A relação educador - educando em Paulo Freire
Sobre o professor como interlocutor qualificado
Retomo um texto que escrevi, em 2021, para tentar caraterizar os processos de comunicação naquelas salas de aula onde o reconhecimento dos alunos como interlocutores privilegiados, conduz os seus professores a assumirem-se como interlocutores qualificados
“Quem conhece o pensamento de Paulo Freire sabe que a relação dialética que se estabelece entre educador e educando é uma das suas preocupações matriciais, de tal modo que dois dos capítulos da «Pedagogia do Oprimido» (Freire, 1975) não só se referem a essa problemática, como o fazem articulando-a com a reflexão em torno da conceção bancária e da conceção problematizadora da educação. Um dos capítulos, por isso, intitula-se «A concepção «bancária» e a contradição educador-educando» (p. 263), enquanto o outro é designado por «A concepção problematizadora e a superação da contradição educador-educando» (p. 263). No caso do livro «Extensão ou Comunicação?» (Freire, 2001), Freire volta a refletir sobre a relação educador-educando, confirmando a sua abordagem, mas submetendo-a a uma prova de fogo concreta, no momento em que demonstra como a relação entre engenheiros agrónomos e camponeses que, de algum modo, corporiza a relação que se estabelece entre o conhecimento cientificamente validado e o conhecimento validado pelas tradições e pela prática, não tem de conduzir nem à afirmação de uma relação de subordinação do segundo face ao primeiro, nem à desvalorização ou à caricaturização deste último. Recusando qualquer uma destas hipóteses, Paulo Freire discute quer a necessidade quer as possibilidades de estabelecer uma relação de comunicação empoderadora, mas sem ignorar ou ocultar as dificuldades que uma tal operação pressupõe, as quais tanto podem ter a ver com o pensamento mágico de uns como perante as conceções e a ação extensionista dos outros.
(...)
Por isso, quando Paulo Freire (2001) reconhece as especificidades do pensamento mágico, mostrando-nos como este impossibilita os camponeses “de captar o desafio em suas relações autênticas com outros fatos” (p. 29), mostra-nos, também, a necessidade dos técnicos terem em conta que a resposta à questão: “Como substituir os procedimentos destes homens frente à natureza, constituídos nos marcos mágicos da sua cultura?” (p.31), “não pode estar na extensão mecanicista dos procedimentos técnicos dos agrônomos” (p. 31). É que o “pensamento mágico não é ilógico nem é pré-lógico. Tem a sua estrutura lógica interna e reage, até onde pode, ao ser substituído mecanicistamente por outro” (p.31).
Assim, não se põe em causa a necessidade de os camponeses superarem um tipo de “conhecimento puramente sensível por um conhecimento que, partindo do sensível, alcança a razão da realidade” (Freire, 2001, p. 33), o que se discute é como é que essa transição pode ser estimulada. Para isso, é necessário reconhecer como condição educativa, e não como problema, que
“quanto mais observamos as formas de comportar-se e de pensar de nossos camponeses mais parece que podemos concluir que, em certas áreas (em maior ou menor grau) eles se encontram de tal forma próximos ao mundo natural, que se sentem mais como parte dele, do que como seus transformadores. Entre eles e seu mundo natural (e também e necessariamente cultural) há um forte ‘cordão umbilical’ que os liga. Esta proximidade na qual se confundem com o mundo natural lhes dificulta a operação de ‘ad-mirá-lo’, na medida em que a proximidade não lhes permite ver o ‘ad-mirado’ em perspetiva” (Freire, 2001, p. 32).
É perante a necessidade de envolver os camponeses na problematização desta visão do mundo que P. Freire denuncia, (...), a “ação extensionista” (p. 22), a qual corresponde à “necessidade que sentem aqueles que a fazem, de ir até a ‘outra parte do mundo’, considerada inferior, para, à sua maneira, ‘normalizá-la’” (p.22). Define-se, assim e, por esta via, também, a atitude seminal daqueles que se situam no paradigma da instrução, os quais constroem a sua intervenção como educadores a partir de uma visão deficitária dos educandos, o que justifica, como Paulo Freire o denuncia, (...) que “o termo extensão se encontre em relação significativa com transmissão, entrega, doação, messianismo, mecanicismo, invasão cultural, manipulação, etc.” (p.22).
O problema do extensionismo, e por arrastamento o do instrucionismo, é que no “processo de extensão, observado do ponto de vista gnosiológico, o máximo que se pode fazer é mostrar, sem revelar ou desvelar, aos indivíduos uma presença nova: a presença dos conteúdos estendidos. A captação destes, como mera presença, por si mesma, não possibilita, àqueles que o captam, que deles tenham um verdadeiro conhecimento. É que, a mera captação dos objetos como coisas, é um puro dar-se conta deles e não ainda conhecê-los” (Freire, 2001, p. 28).
É a partir desta constatação que Paulo Freire (2001), reafirmando que “o conhecimento não se estende do que se julga sabedor até aqueles que se julga não saberem” (p. 36), propõe, em alternativa, que o conhecimento seja visto como algo que “se constitui nas relações homem-mundo, relações de transformação, e se aperfeiçoa na problematização crítica destas relações” (p.36), o que significa que
Para discutir com os camponeses qualquer questão de ordem técnica, impõe-se que, para eles, a questão referida já constitua ‘um percebido destacado em si’. Se ainda não o é, necessita sê-lo. Se já constitui ou ainda não ‘um percebido destacado em si’ é necessário que, em ambos os casos, os camponeses captem as relações interativas entre o ‘percebido destacado’ e outras formas da realidade.
Isto demanda um esforço não de extensão mas de conscientização que, bem realizado, permite aos indivíduos se apropriarem criticamente da posição que ocupam com os demais no mundo. Esta apropriação crítica da posição os impulsiona a assumir o verdadeiro papel que lhes cabe como homens. O de serem sujeitos da transformação do mundo, com a qual se humanizem.
Por tudo isto, o trabalho do agrônomo não pode ser o de adestramento nem sequer o de treinamento dos camponeses nas técnicas de arar, de semear, de colher, de reflorestar, etc. Se se satisfizer com um mero adestrar pode, inclusive, em certas circunstâncias, conseguir uma maior rentabilidade do trabalho. Entretanto, não terá contribuído em nada ou quase nada para a afirmação deles como homens mesmos” (p. 36).
Se esta reflexão de Paulo Freire sobre o trabalho dos agrónomos corresponde a uma denúncia justificada e sustentada de um trabalho de formação que se constrói em função da desvalorização dos educandos, também nos mostra que não estamos perante uma relação isenta de tensões epistemológicas entre visões de mundo distintas. O diálogo entre agrónomos e camponeses que Paulo Freire propõe, está longe de poder ser identificado com o “desenvolvimento de intercâmbios subjetivos” (Bruner, 2000, p. 85), a partir do qual identificamos a dinâmica educativa que o “paradigma pedagógico da aprendizagem” (Trindade & Cosme, 2010, p. 41) perfilha. É que na perspetiva de Freire, a relação entre aqueles atores sociais, (...), nem justifica que a problemática do conhecimento seja desvalorizada como problemática decisiva do projeto de formação, nem, por isso mesmo, seja vista como uma problemática isenta de dificuldades, já que se reconhece que os educandos são vistos como construtores ativos do conhecimento e não meros recetores da informação que os seus educadores vão divulgando” (Trindade, 2021, p. 137 - 140)
Chegados aqui, há duas condições que gostaria de destacar para, a partir dos nexos que Freire estabelece entre o processo de comunicação e o processo de conscientização, refletirmos sobre as exigências da ação docente vista como um processo de interlocução qualificada. Uma tem a ver com o que Matias Alves nos recordava neste blog e diz respeito, grosso modo, à atitude e à disponibilidade dos professores para oferecerem aos alunos a ocasião de ser, de comunicar, de escolher, de agir, de se confrontarem entre si e com eles. Uma opção que nos remete para os dilemas profissionais que Perrenoud evoca para evidenciar a complexidade de um agir profissional que recusando a colonização do outro, recusa, igualmente, a demisão educativa em nome do empoderamento desse outro. A outra condição diz respeito ao conhecimento profissional que se exige para que um docente protagonize um tal papel. Um assunto que conto abordar num outro texto, dado a complexidade do que está em jogo, nomeadamente ao nível da necessidade de repensarmos a relação entre os saberes curriculares e pedagógicos e os saberes académicos e científicos dos professores.
Bibliografia
Trindade, Rui (2021). Paulo Freire e a afirmação da comunicação como modo de ação pedagógica. In Polli, José Renato (Org.), Paulo Freire: Vozes do Brasil e de Portugal (131- 150). Jundiaí - SP/ Campinas - SP: Editora Fibra / Edições Brasil / Editora Brasílica.
No 1.º CCE deste ano letivo, 1.º ano de escolaridade, estávamos a avaliar os Planos individuais. Claro que “Trabalhei bem” é claro que “Concordo contigo”… até que a B. (6anos): “Não concordo contigo” Porquê? “Porque te portaste mal”
Debatemos o que era afinal trabalhar bem. Eu nem precisei falar muito.