A revolução tecnológica na Educação e as questões omissas sobre o ato de aprender
Pedro Santa Clara (PSC) é um nome que tem estado nas páginas dos jornais. É o fundador da Escola 42 onde se formam profissionais de desenvolvimento de software e o impulsionador do projeto Tumo que, em Coimbra, agrega mais de mil jovens, entre os 12 e os 18 anos, para viverem experiências formativas em áreas do seu interesse, como é o caso da música, fotografia, cinema, animação, programação, robótica, desenvolvimento de jogos ou design gráfico.
É a partir destes dois projetos que PSC tem vindo a assumir um protagonismo crescente nos debates educativos educativos contemporâneos, defendendo a necessidade da Escola se abrir à revolução tecnológica em curso. Será esta revolução que, na sua perspetiva, irá permitir que cada um desenvolva as suas potencialidades, evolua aos seu próprio ritmo, aprenda de forma cooperada e aprenda a aprender. Por isso, na “Escola 42 não há aulas, há uma plataforma digital que conduz os alunos, através de uma série de desafios, cabendo-lhes pesquisar o conhecimento para os resolver por si e uns com os outros. A essência da escola é usar a tecnologia para aplicar os princípios fundamentais da pedagogia: aprender fazendo e uns com os outros”. Daí que defenda que a atual “gigantesca falta de professores é uma oportunidade” para se desenvolverem projetos desta natureza. Um pressuposto que assenta no reconhecimento de que, hoje, “quem queira aprender qualquer tema, cozinha, fazer o nó da gravata ou astrofísica, a primeira iniciativa é ir ao YouTube”.
Sendo obrigado a reconhecer que há propostas de PSC que temos de levar a sério (a recusa da autocracia curricular, pedagógica e organizacional, a desconfiança sistemática face aos estudantes ou a recusa em potenciar as TIC como recursos da aprendizagem dos alunos), reconheço, no entanto e igualmente, que, devido às suas especificidades, quer a Escola 42 quer o projeto Tumo não podem ser entendidos como portadores de um modelo educacional alternativo aos projetos de educação escolar. Sendo possível e desejável que na Escola haja espaços e momentos como aqueles que se dinamizam no projeto Tumo, importa afirmar que sendo isso necessário não é, contudo, suficiente. É tendo em conta os desafios e as exigências da sociedade em que vivemos que não se pode defender que nas escolas cada um deve aprender aquilo que deseja aprender. Seria uma catástrofe política, social e cultural fazer depender do gosto e dos interesses dos estudantes, e já agora das suas famílias, as decisões curriculares que orientariam os seus percursos escolares. Estaríamos perante uma atitude demissionária que alienaria a Escola de um dos seus principais e mais decisivos compromissos: o de despertar o desejo e a vontade de aprender dos seus alunos. Se não podemos desejar aquilo que desconhecemos, também não nos podemos dar ao luxo de ignorar que certas perspetivas, quadros concetuais ou modos de ver e de pensar é que nos poderão salvar da barbárie e permitir que sejamos capazes de construir uma vida em comum, marcada por uma visão cosmopolita dos outros, do mundo e da Natureza. A nossa vida sem as experiências de educação não-formal que fomos experimentando seria certamente mais pobre, ponto final. Mas o que seria de nós sem a Escola, apesar desta não ter sido aquilo que deveria ter sido?
O outro problema da perspetiva educativa de PSC diz respeito à sua abordagem monolítica sobre o ato de aprender. Para ele, como atrás o constatamos, aprender a cozinhar, a fazer o nó da gravata ou aprender Astrofísica pode ser concretizado através do recurso ao Youtube. Nada mais simples e expedito. É como se aqueles três atos pressupusessem o mesmo tipo de desafios pessoais e intelectuais ou como se as dinâmicas da aprendizagem nas situações em questão fossem equivalentes. Tal como no-lo lembra Bernard Charlot (2000), não há aprendizagem, mas aprendizagens. Uma coisa é aprender a dominar um instrumento ou uma atividade, outra coisa é aprender a estabelecer relações interpessoais e outra, ainda, é aprender através da apropriação de conceitos e do enriquecimento e complexificação dos quadros concetuais onde aqueles se enquadram. Aprender implica também ter de de se confrontar com estratégias de pensar e de agir distintas daquelas que cada um dos alunos foi consolidando ao longo da vida, fruto das suas vivências pessoais nos contextos quotidianos que lhes dizem respeito. Por isso, não se pode ignorar ou minimizar, como PSC o faz, que o ato de aprender seja um ato determinado, sobretudo, pelo modo como se facilita o acesso à informação disponível sobre os objetos da mesma. A ser assim, estaríamos perante um desafio relativamente simples que se circunscreveria, em larga medida, ou a situações de aprofundamento de aprendizagens já realizadas ou ao domínio das aprendizagens instrumentais, mesmo que complexas.
Fora da equação que PSC constrói para refletir sobre o ato de aprender está, por um lado, o desafio de criar o desejo de aprender algo que ainda se desconhece ou o facto de se ignorar que o acesso à informação é, apenas, uma componente de qualquer processo de aprendizagem. A informação é decisiva para que os alunos possam elaborar representações pessoais acerca desta mesma informação, não sendo, por isso, o acesso à mesma que garante a aprendizagem, mas o modo como os alunos têm oportunidade de atribuir significados e, neste sentido, de se apropriar da mesma, o que “altera a quantidade de informação que os alunos possuem acerca de uma tema como provoca, também, mudanças ao nível das suas próprias competências (aquilo que são capazes de fazer, de pensar, de compreender), na qualidade de conhecimentos que dominam e nas possibilidades pessoais para continuarem a aprender” (Mauri, 2001, p. 83). É de acordo com esta dinâmica que a informação se transforma em saber, o que pressupõe um processo que pode ser moroso, o qual obriga a confrontos epistemológicos algumas vezes duros que nem sempre poderão ser resolvidos pela relação que se estabelece, apenas, entre os alunos, uma plataforma digital e os seus pares. É nestas circunstâncias que o trabalho do professor adquire uma importância decisiva como um interlocutor qualificado, seja através do seu contributo para a identificação dos desafios a propor aos estudantes, seja através da criação e organização das situações de aprendizagem; seja através de apoios, tutorias ou aulas que sejam contingentes com as necessidades de cada um dos alunos ou da própria turma; seja, finalmente, para pensar e concretizar projetos de avaliação subordinados à necessidade de contribuir para as aprendizagens dos seus estudantes e, concomitantemente, para o seu desenvolvimento pessoal e social.
Fontes
Charlot, B. (2000). Da relação com o saber : elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed.
Mauri, Teresa (2001). O que é que faz com que o aluno e a aluna aprendam os conteúdos escolares? In Coll, Cesar e al. (Aut.), O construtivismo na sala de aula: Novas perspetivas para a acção pedagógica (74-119). Porto: Edições ASA.