Li o artigo de Maria João Marques (MJM) no «Público» de 23/10/2024, intitulado «Cidadania: O que deve estar (e como) e o que não deve estar», e fiquei chocado com um conjunto de acusações sem fundamento sobre a «Igualdade e Género», enquanto problemática relacionada com a área e a disciplina de «Cidadania e Desenvolvimento». Para além de ser abordada num domínio com uma designação equivalente, a «Igualdade de Género» é, igualmente, uma problemática de um outro domínio daquela área, o da Saúde.
Consultados os documentos relacionados com os dois domínios, constata-se que em nenhum deles se propõem discussões sobre bloqueadores de puberdade ou sobre “cirurgias para mudar de sexo”. De igual modo, nada confirma, nos mesmos documentos, que se dissocie, ao nível da construção da identidade de género, as determinantes biológicas das vicissitudes do processo de socialização cultural a que todos estamos sujeitos. Por isso, tenho muita dificuldade em compreender como MJM conclui que, nos domínios em causa se “abre a porta à crendice absurda (e perigosa) de que género e sexo são realidades paralelas que podem não se cruzar e as pessoas podem nascer no corpo errado (explorada ao absurdo na área programática da sexualidade)”.
O que eu verifiquei é que algumas das preocupações de MJM são, inclusive, algumas das preocupações centrais dos documentos que pude ler e analisar, nomeadamente as que têm a ver com o facto de a educação sexual ser um direito dos adolescentes, justificando, na perspetiva da articulista, que “não pode ficar a cargo das famílias, porque a maioria não tem conhecimentos técnicos para a transmitir ou, tendo, prefere não o fazer”. As preocupações, enunciadas por MJM, acerca da abordagem de “matérias relacionadas com o consentimento sexual e prevenção de violência sexual e violência doméstica” são, igualmente, preocupações centrais dos documentos em análise, tal como a preocupação com “a necessidade de igualdade de direitos, liberdades e oportunidades para ambos os sexos” que, nas propostas educativas que estão à nossa disposição, também valorizam, como MJM sugere, as “estatísticas e (d)os estudos nas mais variadas áreas que demonstram a perceção diferente que se cria sobre homens e mulheres ter mais que ver com enviesamentos prévios que com a real prestação de homens e mulheres”.
O que me chocou na estratégia argumentativa de MJM foi como mobilizou preocupações que, afinal, são as de todos os que valorizam aquela problemática, para conferir credibilidade a uma campanha de desinformação que, em determinados momentos, anda muito próxima daquela que os setores fundamentalistas religiosos ou a extrema-direita têm vindo a promover.
Quando MJM afirma que, na área de Cidadania e Desenvolvimento, se ensina “o negacionismo da biologia, patranhas na esfera da religiosidade sobre a possibilidade de nos libertarmos do sexo de nascença” o que a distingue daqueles que, como denuncia António Guerreiro (Público, 25.10.204), inventam que nas escolas se ensina as crianças a masturbar-se ou a tornarem-se homossexuais e se introduz “a incerteza de que são meninos ou meninas”? Onde é que se defende, como a articulista o afirma, que “a categoria sexo não conta (as mulheres e raparigas, calhando, são discriminadas por gostarem de cor-de-rosa, as esquisitas; se gostassem de azul, não haveria nenhuma desigualdade no mundo)”? Em que evidências credíveis se fundamenta para afirmar que “o Estado (e a escola) deve aceitar dogmaticamente crenças e sentimentos das pessoas sobre si próprias (muitas vezes transitórios e temporários, como o crescente número de pessoas revertendo a transição de género mostra) e impô-los aos demais”?
Diria que isto é ficção maledicente, que nada tem a ver com as preocupações e as propostas que justificam a introdução do domínio «Identidade e Género» na área de «Cidadania e Desenvolvimento». Diria mais, não é o facto de MJM não conhecer os documentos que fui referindo ou, pelo menos, de os ler de forma descuidada e parcial, que me preocupa. O que me preocupa é poder estar perante uma atitude cívica e política que ignora os factos quando estes põem em causa aquilo que são as crenças e as certezas de quem os despreza.
Hanna Arendt denunciou uma tal atitude, no passado, na sua reflexão sobre os totalitarismos e nós, hoje, podemos corroborar o impacto da mesma atitude quando nos defrontamos com todo os tipos de Trumps que minam a nossa vida democrática.
Dito isto, pertenço ao grupo daqueles que estão disponíveis para discutir a área, e sobretudo a disciplina, de «Cidadania e Desenvolvimento», a partir dos documentos que a norteiam e dos estudos que se têm vindo a produzir ou que possam ser produzidos (como o ministro Fernando Alexandre, em boa hora, o anunciou) sobre o modo como a mesma tem vindo a ser operacionalizada nas nossas escolas. É a única opção credível e produtiva. Não podemos continuar a debater estes e outros assuntos que à Escola dizem respeito, a partir das necessidades e preocupações de todos aqueles e aquelas que, apregoando o seu liberalismo concetual e ético, não deixando de ser os ilustres representantes da ideologia autocrática que o «there is no alternative», o famoso TINA, tão bem corporiza.