Educação, analogias, metáforas, parábolas e provérbios (II)
Aprender matemática como se aprende solfejo
Este é o segundo texto da série «educação, analogias, metáforas, parábolas e provérbios», onde se aborda a possibilidade das aprendizagens em Matemática poderem ser captadas em função do modelo utilizado para a aprendizagem do solfejo. Uma proposta que fui buscar a um texto de João Nuno Tavares que encontrei na edição de 27.07.2021 do jornal «Público», intitulado «A propósito de mais uma reforma do Ensino da Matemática», onde o autor critica de forma contundente os novos programas de matemática que entraram em vigor no 1º, 5º e 7º anos de escolaridade, no ano letivo de 2022/2023. Neste texto o autor defende que
Aprender exige disciplina, esforço, repetição, aquisição de mecanismos e, finalmente, avaliação. Afirmar o contrário, pior, implementar o contrário, é criar seres indigentes, incultos, sem referenciais éticos e humanistas, num mundo cada vez mais carente desses valores, para fazer face aos enormes desafios que a atualidade coloca ao planeta e à própria sobrevivência da espécie.
Grandes artistas, músicos, poetas e outros criadores começaram por copiar os seus antecessores, imitando-os pura e simplesmente para dominar as técnicas já experimentadas e validadas. E só depois se emanciparam. A aprendizagem é cumulativa e só depois poderá ser (consistentemente) disruptiva. O solfejo aprende-se de forma automática, não de forma racional e muito menos lúdica. E não há músico, compositor ou executante que não o use...
Neste caso, a estratégia do autor do texto é tentar impor uma visão da aprendizagem em Matemática através da analogia que estabelece com o solfejo, de forma a demonstrar que estamos perante a única opção pedagógica viável. O recurso à analogia corresponde, assim, a um expediente retórico que dispensa a mobilização de argumentos pedagógicos plausíveis, reforçando a ideia de que a problemática em questão é tão evidente que este tipo de argumentos não são necessários. Não diria que João Nuno Tavares se esconde por detrás da analogia para nos tentar convencer da sua perspetiva, mas, antes, que a utiliza para demonstrar o quão inútil é o debate sobre coisas que, como o ensino da Matemática, não têm de ser discutidas.
Deste modo, não se pode considerar que a analogia não faz sentido porque não é esse o problema do excerto em questão. O autor pretende difundir uma ideia, reiteradamente defendida por pessoas enquadradas no campo pedagógico instrucionista, que qualquer relação significativa que os alunos possam estabelecer com o conhecimento culturalmente validado é sempre uma ocorrência posterior, no âmbito de um ciclo educativo que, inicialmente, só se deve preocupar com a memorização de conceitos, cujo significado os alunos não têm de compreender, ou com o envolvimento destes em rotinas e procedimentos que têm de aplicar sem saber porque o fazem.
O recurso à aprendizagem do solfejo serve para conferir credibilidade a esta tese pedagógica que se constrói através de uma analogia que, por via da sua obscura evidência, corresponde a um modo de falsificar a reflexão. E fá-lo quando se atreve a comparar universos que são estranhos entre si, construídos em função de objetos de saber diversos, de tradições heurísticas distintas e de objetivos educacionais diferentes que correspondem, afinal, a atividades pedagógicas que não são comparáveis. Por isso, é pouco rigoroso estabelecer o tipo de generalização que o autor do artigo pretende propor. É abusivo fazê-lo porque o solfejo diz respeito, em larga medida, ao desenvolvimento de capacidades psicomotoras que, para serem adquiridas, necessitam de treino continuado e sistemático.
As aprendizagens em Matemática colocam-nos perante desafios cognitivos mais ambicioso, Ainda que seja necessário aprender a nomear e a utilizar um léxico específico que remete para o domínio da memorização, não podemos reduzir estas aprendizagens, apenas, a esta dimensão. É que, na área em questão, a aprendizagem do léxico não pode ser dissociada da aprendizagem da semântica e da sintaxe matemáticas e estas não têm de ser aprendidas, inevitavelmente, em função do modelo do solfejo. É que se o forem, não só se está a cometer uma traição face aos fundamentos epistemológicos que sustentam e justificam o desenvolvimento histórico-cultural da área da Matemática, como se impede que esta área constitua uma oportunidade que viabiliza e estimula o desenvolvimento quer do raciocínio, do pensamento crítico e da criatividade matemática dos alunos, quer da sua sociabilidade, perseverança e resiliência, quer do seu impacto antropológico, no momento em que, ao inviabilizar a descoberta de si e dos outros, inviabiliza a possibilidade de, através da Matemática, se contribuir para a construção e a afirmação da humanidade de cada aluno.
Será excessivo desejar tanto da área curricular da Matemática ou, pelo contrário, o que é necessário perguntar é se, em termos educativos, não é um desperdício desejar tão pouco dessa área, reduzindo-a ao estatuto das aprendizagem relacionadas com o solfejo?