Formação contínua de professores: O que fazer? (II)
No texto anterior abordei um conjunto de problemáticas que dizem respeito à dimensão político-institucional da formação contínua de professores. Neste, o foco uma outra dimensão: a da gestão e organização dos projetos de formação contínua. Uma dimensão que, hoje, nos obriga, entre outras coisas, a refletir quer sobre o modelo de perfil de formador que possa adequar-se ao desenvolvimento de iniciativas subordinadas ao que tenho vindo a designar por lógica empoderadora da formação, quer sobre a necessidade de problematizar a relação entre a formação contínua e o conhecimento profissional dos professores.
Não é a primeira vez que neste blogue afirmo a necessidade de os professores serem estimulados a assumir o papel de autores do conhecimento profissional que lhes diz respeito. Um propósito que, também como já foi escrito, não visa legitimar nem o corporativismo docente nem o empirismo socioprofissional dos professores, mas valorizar a necessidade dos professores se envolverem em diálogos e interpelações que mobilizem de forma cooperada tanto a sua reflexão como o diálogo que devem estabelecer entre si, com os decisores políticos ou com os diferentes corpos de especialistas. Se este é o desafio mais exigente, uma vez que obriga os professores a transitarem, no campo em questão, do papel de consumidores para o de interventores, importa reconhecer um outro desafio, relacionado ainda com este processo de transição, que tem a ver com o perfil e o papel dos formadores. Estes, pelo estatuto e papel que assumem, ocupam um lugar estratégico no âmbito de um tal processo, já que o protagonismo docente nos espaços concretos de formação depende do que os formadores decidem e fazem e, sobretudo, do modo como o decidem e o fazem.
Tenho recorrido ao conceito de isomorfismo pedagógico para valorizar o peso formativo que pode assumir a relação congruente entre o que um formador diz e o que um formador faz, de forma a garantir, por um lado, que estamos perante um projeto de formação previamente amadurecido por parte desse formador e, por outro, que as propostas, atitudes e recomendações que se produzem nos espaços de formação concretos podem ser autênticas, exequíveis, significativas e consequentes.
O outro desafio que gostaria de abordar neste texto tem a ver com a problemática do conhecimento profissional docente que, neste âmbito, obriga a discutir a relação entre o conhecimento científico e académico e o conhecimento curricular e pedagógico. Neste âmbito, o que se me afigura ser necessário é reconhecer a necessidade de superar as clivagens que, ao longo dos anos, se foram estabelecendo entre ambos. Trata-se de uma questão que tem vindo a ser subalternizada, seja devido à visão maximalista sobre as metodologias ditas ativas, em função da qual estas são entendidas, só por si, como instrumentos de transformação das práticas docentes, seja devido ao peso que, pelas mesmas razões, se passou a atribuir às novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) ou à Inteligência Artificial (IA) no quotidiano das escolas.
Não se podendo subalternizar a importância das metodologias ativas, das TIC e da IA no âmbito da gestão e organização do trabalho de formação que ocorre nestes contextos, importa compreender que a mobilização das mesmas como objeto a privilegiar na formação contínua de professores não pode continuar a ser vistas de forma dissociada da especificidade das áreas de saber onde as mesmas são utilizadas. Já é tempo de compreendermos que as particularidades concetuais e heurísticas do conhecimento que carateriza cada uma dessas áreas de saber afetam e determinam se tais metodologias e tecnologias devem ser mobilizadas e como é que o poderão ser. Daí que, por exemplo, as aplicações informáticas ou a metodologia de projeto não possam continuar a ser vistas de uma forma indiferenciada quanto ao modo como se utilizam, como se o domínio do procedimentos pudesse capacitar, por si só, um professor para os utilizar de forma adequada em qualquer disciplina, face a quaisquer conteúdos e perante diferentes desafios pedagógicos. É que a rutura metodológica subjacente à transição entre práticas educativas subordinadas ao magistercentrismo docente para práticas educativas que envolvam um maior protagonismo dos alunos implica obrigatoriamente a afirmação de uma outra relação com o conhecimento culturalmente validado (tanto ao nível dos conteúdos, como dos procedimentos) e, por isso, com o próprio saber e modos de pensar e de agir dos alunos.
Neste sentido, no campo da formação contínua de professores também é necessário reabilitar o conhecimento culturalmente validado como um fator educacional incontornável, tendo em conta que é a apropriação deste tipo de conhecimento que justifica a existência da Escola como uma instituição educativa de massas. Um fator que não pode ficar refém do processo de disciplinarização circunscrita a que o instrucionismo o tem vindo a submeter (Trindade & Cosme, 2024), nem tão pouco pode ser instrumentalizado como um fator cuja pertinência se confina ao papel de um recurso que algumas se mobiliza, de forma subordinada, para se promover o desenvolvimento das capacidades e atitudes dos alunos, vistas, nesta abordagem, como o principal objetivo da Escola.
Tanto a opção por uma estratégia como por outra significa, na prática, que nos demitimos de pensar a formação contínua de forma tão complexa quanto singular, decidindo investir em projetos de formação que, mais do que inconsequentes, contribuem para enrodilhar, ainda mais, a atividade e a profissão docente. Em vez de soluções, continuamos a caminhar por becos sem saída.
Referências
Trindade, Rui; Cosme, Ariana (2024). Escola e Conhecimento: O vínculo incontornável. Porto: Porto Editora.