Num artigo da autoria de Pedro Aguiar que o jornal «Público», de 20.08.2024, partilhou, afirmava-se, a dado momento, que
“Temos de encontrar um equilíbrio entre novas metodologias, novos processos de avaliação, novas competências, e personalização, “ensino à medida”, com o apoio que a tecnologia, nomeadamente a IA pode dar. Nunca foi tão fácil, ou antes nunca estivemos tão próximos de atingir o nirvana em termos do processo de ensino-aprendizagem como é o caso do ensino individualizado e inclusivo, cada um pode aprender o que quer, quando quer e ao ritmo que desejar. Esta completa personalização do processo de ensino-aprendizagem só é possível utilizando os mecanismos da IA, que permitirão desmaterializar, desmonetizar, descentralizar e democratizar a melhor educação do mundo. É uma oportunidade única de nos aproximarmos do “santo graal” do processo de ensino-aprendizagem”.
O otimismo manifestado por Aguiar acerca do impacto da Inteligência Artificial (IA) no campo da educação escolar só é possível em função de uma abordagem de alguém (coordenador, no IPAM, de uma Pós-Graduação de Inteligência Artificial na área do Marketing) que se encontra familiarizado com a primeira, mas que, perante o segundo, tende a repetir alguns dos mantras em voga no que diz respeito às mudanças a introduzir naquele campo. Diria até que o texto em análise exprime o que me parece ser a abordagem dominante acerca da relação entre IA e Escola. O entusiamo subjacente à crença de que “nunca estivemos tão próximos de atingir o nirvana em termos do processo de ensino-aprendizagem” é algo que começa a ter uma popularidade crescente quando se discutem as mudanças curriculares e pedagógicas a introduzir nas escolas, ao ponto de se associar obrigatoriamente a IA com a inovação pedagógica.
Por isso, é que este é um assunto que tem de ser objeto de uma discussão séria e competente. Uma discussão que, na verdade, é mais uma discussão sobre currículo e pedagogia do que sobre IA. É a partir deste pressuposto que o texto de Pedro Aguiar tem de ser interpelado, dado que a identificação do “’santo graal’ do processo de ensino-aprendizagem” com o ensino individualizado e inclusivo, o qual seria potenciado pela possibilidade de cada um poder “aprender o que quer, quando quer e ao ritmo que desejar”, é uma afirmação que obriga a recorrer a um especialista em educação como Perrenoud, mais do que a um especialista em IA.
Esta referência ao sociólogo suíço decorre da necessidade de confrontar a conceção de individualização proposta no texto com a reflexão de Perrenoud (2001) sobre o mesmo assunto, num livro publicado originalmente em 1986 - «A pedagogia na Escola das diferenças». É nesta obra que se discute a relação entre individualização, diferenciação e inclusão escolar, clarificando-se que é possível estabelecer nexos entre a primeira e a segunda, ainda que não se possa reduzir a diferenciação curricular e pedagógica à individualização das informações, do trabalho dos alunos, da observação e da avaliação. Para Perrenoud (idem), por um lado, é necessário ter em conta, também, “a força do grupo como lugar de educação mútua e de apredizagem, através da comunicação e da cooperação, no âmbito do grupo-classe ou de subgrupos” (ibidem). Por outro, é necessário reconhecer, também, que a “individualização das intervenções e das atividades não implica, em si mesma, uma menor distância cultural ou uma relação mais positiva entre o professor e os alunos em dificuldades escolares” (p. 34). Por fim, lembra Perrenoud, a individualização das intervenções e das atividades não é suficiente para conferir sentido, só por si, ao trabalho que os alunos realizam.
Em suma, a relação entre individualização e inclusão não é uma relação inevitável. Veja-se, por exemplo, como nos projetos de educação meritocrática a individualização dos percursos dos alunos, circunscrita, apenas, àqueles que se enquadram na categoria dita das dificuldades de aprendizagem e subordinada aos pressupostos concetuais e praxeológicos da abordagem behaviorista, contribui, por via do modo como se diferenciam os objetivos, as estratégias de ensino e o próprio de avaliação, para que, em nome do reconhecimento das diferenças, se legitime, afinal a segregação curricular e pedagógica dos alunos sujeitos a tais programas de intervenção educativa.
Será no próximo post que irei abordar o processo de personalização das estratégias de ensino e aprendizagem como uma problemática que não poderá ser ignorada, sobretudo quando essa personalização está na origem da crença de que a melhor educação é aquela que proporciona aos estudantes a possibilidade destes poderem aprender o que querem, quando querem e ao ritmo que desejarem.
Referências bibliográficas
Perrenoud, Philippe (2001). A pedagogia na Escola das diferenças: Fragmentos de uma sociologia do fracasso. Porto Alegre: Artmed,
Senti-me a entrar no mito do maravilhoso mundo novo do Huxley! Num momento em que procuramos criar mais dialogicidade no ambiente escolar e redes de empatia, esta aposta "neomodista" é um soco no estomago e mais um contributo para a descrença no caminho que se está fazendo descaminhando num sentido com sentido!