Inteligência Artificial e Educação: A autossuficiência cultural dos alunos em debate
“Temos de encontrar um equilíbrio entre novas metodologias, novos processos de avaliação, novas competências, e personalização, “ensino à medida”, com o apoio que a tecnologia, nomeadamente a IA pode dar. Nunca foi tão fácil, ou antes nunca estivemos tão próximos de atingir o nirvana em termos do processo de ensino-aprendizagem como é o caso do ensino individualizado e inclusivo, cada um pode aprender o que quer, quando quer e ao ritmo que desejar. Esta completa personalização do processo de ensino-aprendizagem só é possível utilizando os mecanismos da IA, que permitirão desmaterializar, desmonetizar, descentralizar e democratizar a melhor educação do mundo. É uma oportunidade única de nos aproximarmos do “santo graal” do processo de ensino-aprendizagem” (Pedro Aguiar, «Público», 20.08.2024).
No post anterior, a propósito da centralidade que, no texto em epígrafe, se atribui à individualização do processo de ensino-aprendizagem como uma das principais razões que se invocam para justificar a importância da IA, discutiu-se quer o excesso de expectativas pedagógicas que se produzem acerca da individualização dos processos de ensino e de aprendizagem quer os riscos da mesma. Neste post, ainda no âmbito da reflexão sobre a possibilidade de através da IA se atingir o nirvana ao nível de tais processos, comprometi-me a discutir uma outra crença fundacional presente no texto acima transcrito: a de que a melhor educação é aquela que proporciona aos estudantes a possibilidade destes poderem aprender o que querem, quando querem e ao ritmo que desejarem.
Quais as implicações educativas de um tal pressuposto? Estamos perante uma condição universal para configurar um projeto de educação escolar desejável ou perante uma possibilidade circunscrita?
Ainda que simpatize com os movimentos pedagógicos que, nas primeiras décadas do séc. XX, estão na génese de um tal projeto porque foi a partir deles que se começaram a recusar o instrucionismo curricular e pedagógico da Escola-Quartel, não tenho dúvidas, hoje, acerca dos equívocos dos mesmos. O maior dos quais tem a ver com a desvalorização do conhecimento culturalmente validado, entendido como um fator ao qual os estudantes acedem se a Escola souber cuidar do desenvolvimento das suas capacidades cognitivas e socioemocionais e se se interessar mais pelas estratégias que estes mobilizam do que com a natureza e a qualidade dos produtos, os quais tendem a ser vistos como uma variável menor.
Nada tendo contra a necessidade de nas escolas se valorizar o desenvolvimento daquelas capacidades e de se assumir uma maior preocupação com as estratégias de processamento de informação e de resolução de problemas, sei, no entanto, que tanto o desenvolvimento das primeiras como o das segundas é uma possibilidade que não pode ser dissociada do modo como se estabelece a relação dos alunos com o conhecimento culturalmente validado. Não faz sentido, por isso, que alguém me diga que para um professor deveria ser indiferente o resultado da resolução de um problema em matemática, dado que aquilo que ele tem de fazer, é de tentar compreender como é que o aluno raciocinou para construir um tal resultado. Se, na verdade, a qualidade do produto final for inútil, então porque é que um aluno tem de aprender a raciocinar?
Creio que é nesta dicotomização entre desenvolvimento das capacidades e conhecimento culturalmente validado que se encontra a génese das perspetivas curricular e pedagogicamente liberais e, deste modo, se explica que se defenda que as aprendizagens ideais são aquelas que os alunos realizam sobre o que querem, quando querem e como querem, dado que a disponibilidade daquele tipo de conhecimento se encontra dependente da possibilidade daquelas capacidades se manifestarem. Esta é uma tese viável se continuarmos a confundir informação com conhecimento. Neste caso, é possível defender que o acesso à primeira é suficiente para que nos possamos apropriar do segundo. O caso muda de figura quando se parte do princípio que aceder à informação é, apenas, uma etapa de um processo mais longo e complexo de construção da nossa relação com o conhecimento. Um processo que devendo ter em conta o que cada um de nós sabe e é, implica sempre algum tipo de confronto com um tipo de conhecimento que ainda não é nosso e que nos propõe uma leitura diferente da nossa sobre a realidade, outros modos de a abordar, de a interpretar ou de lhe conferir forma e significado. Isto é, a relação com o conhecimento culturalmente validado tem mais a ver com o modo como a mesma se constrói, a partir dos quadros concetuais e dos instrumentos e procedimentos heurísticos que caraterizam cada uma das áreas do saber do que com o simples acesso à mesma. Ou seja, este é um processo que não podendo ser previamente determinado, e por isso algoritmizado, também está longe de poder ser um processo aleatório ou vivido em função, apenas, das experiências e saberes dos alunos.
Sendo possível que estes aprendam o que querem, quando querem e como querem, importa perguntar se isso é desejável e, sendo desejável, como se impediria que, nesse ambiente educativo de autonomia máxima, se legitimassem os preconceitos, os erros premeditados, os estereótipos, as crendices e as afirmações carentes de rigor? Até que ponto essa possibilidade não é afetada pelas assimetrias socioculturais que caraterizam a nossa vida pública comum?
Dir-me-ão os mais otimistas que a IA tanto pode impedir os erros e a falta de rigor como de constituir uma oportunidade para os alunos das classes ditas socialmente desfavorecidas. A IA, neste sentido, seria uma espécie de super-docente, capaz de antecipar as dificuldades, encontrar as respostas de que cada um necessita ou de definir as melhores estratégias para que os alunos aprendam.
Mais do que as minhas dúvidas face a uma tal possibilidade, no presente, e de ter de admitir que talvez isto possa acontecer no futuro, o que importa, neste momento, é constatar que a hipótese da superdocência da IA põe em causa, afinal, que os alunos possam aprenderem o que querem, como querem e quando querem.
Chegados aqui, importa chamar a atenção para o facto de, nos dois texto em que abordei este assunto, ter vindo a propor uma reflexão sobre o domínio curricular e pedagógico e não tanto sobre a IA. É que não sendo possível ou desejável negar a importância educativa que esta ferramenta pode assumir nas nossas escolas, é necessário compreendermos que a tecnicidade do debate obriga, sempre, a clarificar pressupostos políticos e epistemológicos do mesmo, o que, a não ser feito, amputa a reflexão curricular e pedagógica do rigor concetual de que a mesma não pode prescindir.
Por isso, o meu distanciamento face ao texto de Pedro Aguiar e às perspetivas que comungam dos mesmos princípios e preocupações. Uma posição que não corresponde a uma recusa da IA mas à recusa de um conjunto de mantras educativos que urge desnudar e problematizar. São estes mantras que temos de confrontar com uma outra preocupação: a de reconhecer, igualmente, que a valorização das singularidades de cada um não nos pode impedir de termos de descobrir, compreender e preservar o quanto os seres humanos têm em comum e devem partilhar. Por isso é que é necessário ser prudente na exaltação de perspetivas curriculares e pedagógicas cujo liberalismo radical constitui um problema civilizacional que, sobretudo no mundo contemporâneo, não poderemos nem ignorar nem desvalorizar.