Chamo-me Rui Trindade. Tenho 67 anos e concluí, em 1979, o Curso de Professor do Ensino Primário, na antiga Escola do Magistério Primário do Porto (EMPP). Foi em Sande (Marco de Canaveses) que, no dia 18 de janeiro de 1980, iniciei a minha vida profissional. Recordo essa primeira experiência, no 2º período do ano letivo de 1979/80, tal como a seguinte, já no 3º período, na Escola Primária de Louredo da Serra (Paredes), como experiências gratificantes. Teria, por isso, de esperar pelo ano letivo seguinte, em Água Longa (Stº Tirso), para enfrentar o que os especialistas designam por choque com a realidade. Atribuíram-me uma turma de 35 alunos, onde cerca de metade estava na escola pela primeira vez, enquanto os restantes repetiam, pelo segundo ou pelo terceiro anos consecutivos, a via sacra daqueles que pareciam estar condenados a não aprender a ler e a escrever.
Foi um ano muito duro, não por sentir dificuldades em estabelecer e gerir relações afetuosas e de respeito mútuo com esses alunos e com as suas famílias, mas por não ser capaz de concretizar o projeto profissional que alimentava os meus sonhos. Um projeto onde as crianças seriam o centro da vida nas escolas, sendo necessário, por isso, deixá-las aprender, de acordo com os seus interesses e necessidades, num ambiente educativo onde pudessem cooperar entre si e tomar decisões de forma autónoma e responsável sobre o que tinham de fazer. Na minha sala, contudo, não era isto que acontecia e, ao contrário das experiências vividas no ano anterior, eu não me podia desculpar nem com a estrutura formatada da Telescola, em Sande, nem com o pouco tempo que tive à minha disposição para mudar as rotinas dos meus alunos do 4º ano, em Louredo.
O problema só podia estar em mim. Afinal não era tão competente como deveria ser para fazer o que desejava fazer, porque, pensava eu, não era capaz de identificar as especificidades da atividade cognitiva das crianças, o que me impedia de compreender como é que elas aprendiam. Não foi por acaso que acabei por me candidatar à licenciatura de Psicologia na Universidade do Porto, a qual concluí, na área do Desenvolvimento e da Educação da Criança, antes de me matricular e de defender a dissertação referente ao Mestrado em Ciências da Educação, no domínio da Educação da Criança. Foi este mestrado e, mais tarde, o doutoramento que realizei na mesma área que me ajudaram a desvendar e a compreender as minhas ilusões e equívocos, os quais, afinal, não eram mais do que as ilusões e os equívocos do Movimento da Escola Nova que, posteriormente, foram sendo perpetuados, mesmo que noutros termos, pelo movimento cognitivista e por aqueles que perfilham uma visão tecnocrática da importância das neurociências no campo da educação.
Com estas afirmações, mais do que desprezar o conhecimento e a reflexão que provêm dos contributos provenientes do campo da Psicologia, pretendo, sobretudo, apelar para uma utilização prudente e distinta dos mesmos, na esteira das propostas de Bruner, Cole, Valsiner ou, entre outros, Wertsch que nos mostram como a nossa atividade cognitiva é sempre, e inevitavelmente, uma atividade culturalmente enquadrada. Ou seja, é necessário que o papel da Psicologia não continue a ser entendido como o de um instrumento que determina, de forma descontextualizada a reflexão e a ação dos docentes. O conhecimento e a reflexão provenientes da área da Psicologia podem ser pertinentes se contribuírem, a seu modo e à sua medida, para que, ao alargar o campo do diálogo educacional, permitam reflexões e intervenções mais consistentes e informadas.
Abreviando, o apaziguamento da minha relação com a profissão só se tornou possível com a rutura que estabeleci com o que, hoje, designo por paradigma pedagógico da aprendizagem. Só assim se tornou possível, para mim, reconhecer, de forma explícita e deliberada, que a Escola deve ser uma instituição de empoderamento cultural que, pelo facto de o poder ser, permite que os seus alunos possam desenvolver capacidades e atitudes tanto no domínio cognitivo como no domínio socioemocional. Por isso, é que, na minha perspetiva, o desafio mais decisivo para assegurar a transição da Escola instrucionista para uma Escola onde se eduque de forma culturalmente significativa e mais cosmopolita passa por reabilitar o conhecimento culturalmente validado como o fator determinante, em função do qual se pode estimular a inteligência e a humanidade dos alunos. Por isso, também, é que os professores não podem ficar circunscritos ao papel de facilitadores ou de mediadores, devendo afirmar-se, antes, como a Ariana [Cosme] o defende, em função de um outro papel: o de interlocutores qualificados. Isto é, profissionais que assumem intenções educativas prévias que não determinando, só por si, o que os alunos aprendem, são decisivos para que os alunos se apropriem de um património de informações, instrumentos, procedimentos e atitudes que lhes permita viverem e intervirem no mundo e no tempo em que vivemos. Um mundo e um tempo que exige, de todos nós, mais inteligência e cidadania. Um mundo e um tempo que não se compadece nem com a utilização do conhecimento culturalmente validado como instrumento de disciplinarização intelectual e atitudinal circunscrita dos alunos, nem com a sua subalternização, em nome da democratização dos projetos de educação escolar, como se todas as vozes e todos os tipos de conhecimento tivessem o mesmo valor epistemológico e a mesma pertinência social.
O que, hoje, nos é solicitado como professores é uma tarefa que não sendo inédita, assume, contudo, contornos e direções que importa continuar a aprofundar e a descobrir. É necessário reconhecer, como condição e não como problema, que o ato de educar é um ato indeterminado, mesmo que se deva reconhecer, também, que não se faz sem referências concetuais e experienciais. E é indeterminado porque supõe um encontro, que, por vezes, é um confronto, entre um património cultural já constituído e validado e as conceções e idiossincrasias de sujeitos que, independentemente da distância a que se encontram deste património, deverão ser tidos em conta quanto ao que são e ao que sabem. Um encontro que só se justifica para que os segundos se apropriem, não apenas da informação que outros construíram, mas, também, dos diversos tipos de racionalidade epistemológica e dos diversos tipos de instrumentos concetuais e heurísticos que a permitiram construir. Daí o confronto que não podendo constituir motivo para anular o sujeito que aprende, não permite, também, que o consideremos como um ser culturalmente autossuficiente. Este é o nosso desafio, enquanto docentes, o qual, ao contrário do que alguns apregoam, não é um desafio que se resolve em função da opção pelas estratégias e pelos métodos alegadamente mais adequados. É que qualquer estratégia ou método pedagógico não deveria ser dissociado das particularidades concetuais e heurísticas das áreas do saber a que dizem respeito.
É perante este conjunto de desafios e de interrogações que decidi criar este blogue, onde se possa investir no desenvolvimento de reflexões que, em última análise, se subordinem ao pressuposto de que a Escola é, acima de tudo, uma instituição de empoderamento cultural. Chamei-lhe «Encruzilhadas» porque não há mapa ou waze que nos indique a direção a seguir.
NOTA: Todas as 2ª feiras haverá um texto novo que pode ser meu ou de outra pessoa qualquer. Um texto que tanto poderá ser uma resposta a uma questão, como uma notícia, como a transcrição de um excerto, respostas no âmbito de reflexões conjuntas que possamos empreender, memórias e tudo o que neste momento ainda não podendo ser imaginado, pode fazer sentido para que a Escola se afirma e caraterize como um espaço de construção e partilha de produções culturais.
Desejo-te uma viagem longa e proveitosa na companhia de todos os que te acompanharem neste Blog.
Fica com a certeza que te acompanharei, também, nesta viagem. Bjs, Ariana
Que maravilha, que lufada de ar fresco, que inspiração! Vamos juntos para irmos mais longe e mais fundo 🥰