Modo de produção da exclusão escolar
Uma obra de Joaquim Azevedo sobre «os alunos que estão fora da Escola dentro»
Joaquim Azevedo (JA) publicou, em 2024, através da Fundação Manuel Leão, uma obra intitulada «Modo de produção da exclusão escolar: Olhar a escola a partir dos excluídos», onde confere visibilidade, denuncia e reflete sobre “os alunos que estão fora da Escola dentro” (Azevedo, 2024, p. 97). É um autêntico murro na alma que constitui um objeto de reflexão obrigatória para todos nós.
Trata-se de um trabalho dividido em três partes que se relaciona com o estudo produzido por JA, a partir da “análise de 25 percursos escolares de jovens que frequentaram o Projeto socioeducativo alternativo Arco Maior, entre 2013 e 2019” (idem, p. 31). Um projeto coordenado pelo próprio autor que se carateriza, em termos globais, por acolher “jovens que abandonaram a escolaridade obrigatória e que se encontram em situação de exclusão social, impedidos de aceder ao emprego, uma vez que não são detentores de um grau de escolaridade básica (equivalente a seis ou nove anos de escolaridade)” (ibidem).
Estamos perante um livro que não é fácil de ler, não por causa da sua escrita que é clara, expressiva e parcimoniosa, mas porque “olhar a escola a partir dos que dela são excluídos ganha outra veracidade, crueza e incomodidade” (idem, p. 36). Somos obrigados a entrar num universo que todos os dias perpassa pelos nossos olhos sem que nós o consigamos ou desejemos ver. Por isso, os vinte e cinco resumos referentes ao percurso escolar dos jovens que participaram no estudo são decisivos para nos mostrar como a sua exclusão escolar “é feita, de modo silencioso, geralmente despercebido, contínuo e eficaz, na sua profunda justiça e desumanidade” (ibidem).
É na sequência dos referidos resumos que se encontra, ainda na Parte I do livro, dedicada a evidenciar «como se produz a exclusão escolar», um terceiro capítulo onde o autor reflete sobre os resultados da investigação por si realizada. Trata-se de um trabalho relevante que merece ser lido com atenção, nomeadamente o texto que diz respeito às “microdecisões como modo de produção da exclusão” (idem, p. 110). É aí que se identificam os doze passos que consubstanciam a “espiral de práticas «educativas» seletivas e humilhantes” (idem, p. 112) que explicam como as escolas se transformam, desde muito cedo, em espaços estranhos e hostis para os alunos a quem, neste livro, JA concede a vez e a voz.
Na parte II da obra, intitulada «Como se legitima a exclusão escolar», começa-se por demonstrar, no seu primeiro capítulo, como a escola portuguesa se transformou, citando de cor Eurico Lemos Pires, uma escola de massas elitizada. Se uma tal constatação é fundamental, importa, também, como acontece, no seu capítulo 2, compreender que não estamos perante uma inevitabilidade. Por isso, neste capítulo, JA dedica-se a refletir como as escolas (e, na perspetiva do autor, as cidades-comunidade) “fazem a diferença e tanto podem contribuir para não reproduzir as desigualdades sociais de partida, como para as transformar em matéria-prima para a exclusão” (idem, p. 127). Finalmente, dos restantes capítulos da parte II, quero destacar, na página 141, um gráfico, da autoria de JA, sobre as medidas de política social e educacional e a evolução da redução do abandono escolar. Vale a pena determo-nos no mesmo e refletir sobre o impacto dessas medidas e da advertência que o acompanha, através da qual o autor nos lembra que “sabemos bem que é possível fabricar elevados níveis de sucesso escolar reprovando e selecionando alunos , para, no fim, a escola ficar bem na fotografia social” (idem, p. 147).
Por fim, já na parte III do livro, sob o mote de uma questão incontornável: “Escolas sem humilhação e marginalização escolar? Será possível?” (idem, p. 165), JA confronta-nos com as margens estreitas dos percursos escolares dos alunos de quem a Escola, desde muito cedo, esperou muito pouco ou nada. Confronta-nos, igualmente, com o enorme investimento em tempo, recursos e energias que se gastam para construir “listas infindáveis de incapacidades” (ibidem) que, na verdade, acabam por servir, sobretudo, para culpar “as crianças e as famílias pelo insucesso” (idem, p. 169) das primeiras na Escola. Confronta-nos, em terceiro lugar, com a aplicação de “um menu pré-elaborado e codificado” (ibidem) de soluções pedagógicas que, digo eu, quantas vezes se reduz à adoção da estratégia de «mais do mesmo» ou a programas de intervenção sujeitos a objetivos não alicerçados numa análise rigorosa e plausível das reais dificuldades de aprendizagem dos alunos. Programas estes que deixam de fora da “equação da equidade e da justiça” (idem, p. 173), a pedagogia e a organização escolar, para se focarem, sobretudo, em medidas de ação social ou de caráter paraterapêutico. Confronta-nos, em quarto lugar, com o problema de adicionar a ideologia do défice à ideologia da “igualdade de oportunidades meritocrática” (idem, p. 170-171), em função da qual o insucesso dos alunos tende a ser atribuído à sua falta de mérito. É como se a Escola não tivesse nada a ver com o despertar do seu desejo de aprender ou com decisões curriculares e uma organização dos espaços, do tempo e das tarefas que, no fim de cada dia, acabam por impedir esses mesmos alunos de realizar aprendizagens culturalmente significativas e, concomitantemente, de beneficiar de oportunidades de empoderamento pessoal e social.
Dos capítulos seguintes, valorizo a reflexão no capítulo 3 sobre a complexidade do labirinto escolar, onde JA aborda as lógicas e as perspetivas contraditórias que explicam, num primeiro momento, as tensões entre o nível dos condicionantes estruturais que afetam a Escola, o nível das imposições externas a que esta está sujeita e o nível dos diferentes interesses e racionalidades dos atores educativos que participam de diferentes modos na vida escolar, bem como as tensões entre aqueles que tomam decisões políticas e aqueles que, nos mais diferentes patamares, são responsáveis pela operacionalização das mesmas. Tensões estas que não podem continuar a ser vistas, apenas, como problemas, mas como condição a ter em conta e a gerir.
Em suma, estamos perante um livro que é importante, também, porque não se esgota no registo da denúncia. Se é verdade que problematiza as transformações cosméticas, que para além de nada resolverem, contribuem para ocultar os problemas, também discute possibilidades e tendências que poderão configurar diversos cenários e possibilidades de mudança, dependentes de reflexões e de ações que terão de ser construídas de forma mais implicada, cooperada, refletida e consequente.
Não pude deixar de me sentir profundamente tocado pela leitura desta obra que é uma manifestação da coragem cívica e da lucidez do seu autor. Espero, apenas, que possa ter algum impacto, não só nas escolas, mas também nas comunidades de investigação e nas suas agendas. É que se o fenómeno que JA revela tem lugar nas primeiras, não pode deixar de ser visto como algo que diz respeito, igualmente, aos compromissos e opções que as segundas têm vindo a assumir.
Fontes
Azevedo, Joaquim (2024). Modos de produção da exclusão escolar: Olhar a escola a partir dos excluídos. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão.