O ensino da Sociologia no Ensino Secundário
Um pretexto para uma reflexão mais ampla sobre a complexidade do ato de ensinar
Encontrei, num livro intitulado «A Sociologia e o Ensino Secundário» (APS, 1999), um texto de João Sedas Nunes (JSN), docente na Universidade Nova de Lisboa, onde este investigador aborda os desencontros entre a Sociologia e o seu ensino. Trata-se de um texto que nos inquieta e que mostra a necessidade urgente de incluirmos a dimensão epistemológica como componente nuclear das reflexões curriculares e pedagógicas. Um empreendimento que, por isso, obriga a contextualizar tais reflexões, tal como JSN o faz a partir da Sociologia e dos desafios com que esta disciplina confronta quer os professores quer os alunos.
Só a contextualização da reflexão sobre o Ensino da Sociologia é que permitiu que JSN tivesse reconhecido o conflito epistemológico que se estabeleceu entre os saberes da área de saber em causa e os saberes práticos dos estudantes. Diria que esta é uma constatação valiosa que não pode ser ignorada. Se não a tivermos em conta, nunca teremos respostas para superar um tal conflito. É que, como lembra JSN, “a sociologia impõe-se não apenas como uma outra forma, ou melhor: conjunto de formas de ler e interpretar o real social, mas também como um princípio de conhecimento, isto é, uma matriz específica de perceção e de representações que, ao desadequar-se, (...), dos esquemas subjetivos que os atores mobilizam de modo tendencialmente inconsciente nos contextos concretos de ação, afronta igualmente a realidade da sociedade que os atores transportam” (Nunes, 1999, p. 5). Dito de outro modo, a sociologia “ao desmontar a realidade naturalizada (...) exerce uma espécie muito particular de violência simbólica sobre aqueles que, por imperativo estudantil, com ela contactam” (ibidem).
Se este é um primeiro tipo de conflito incontornável do Ensino da Sociologia, há um outro que JSN revela quando reflete sobre as incongruências entre a disponibilidade para ensinar sociologia e o modo como na Escola se (re)produzem e aprofundam as assimetrias sociais. JSN não propõe respostas para responder a estes dois tipos de conflitos estruturantes, ainda que se refira à necessidade dos professores de Sociologia se submeterem ao “princípio da des-fatalização” (idem, p. 116). Isto é, quando estes professores ensinam sociologia não podem dispensar-se de “averiguar e permanentemente controlar as experiências vividas das situações escolares pelas quais passam, as competências específicas que exercitam e os atos de efetiva classificação social dos quais são sujeitos” (ibidem). Daí que o autor não reivindique o fim do ensino da sociologia, mas tão somente que se entenda “as atividades escolares, em particular as pedagógicas, como atividades sociais e que se procure integrar o que a reflexividade sociológica” (idem, p. 115) permite saber sobre as mesmas.
Sei que esta é uma reivindicação que não faz sentido quer para quem entende que o ato de ensinar se circunscreve à transmissão e reprodução de conteúdos ou de operações, quer para quem entende que o desafio maior dos professores nas escolas contemporâneas é, apenas, o de facilitar a relação dos alunos com o conhecimento disponível. Os resultados de ambas as atitudes estão à vista de todos nós, como se comprova pela indiferença que a Escola evidencia face à(s) iliteracia(s) dos seus estudantes. Por isso, o exercício que JSN nos propõe, a partir da disciplina de Sociologia, é um exercício decisivo para que as escolas se afirmem como espaços capazes de suscitar aprendizagens culturalmente significativas.
Ainda que ninguém nos garanta que um tal exercício responde a todas as nossas dúvidas e problemas pedagógicos ou nos torna capazes de realizar milagres, a importância do mesmo tem a ver, sobretudo, com as portas que nos abre para para projetarmos os riscos do que decidirmos fazer e, assim, compreendermos quer o que podemos fazer com e sem dificuldades, quer o que não devemos ou o que não podemos fazer. Se uma tal atitude não nos garante que as nossas salas de aula se transformem, de imediato, num paraíso, poderemos, pelo menos, evitar que sejam o inferno, a partir do momento em que nos permite controlar as nossas expectativas de forma consequente e informada, bem como potenciar a nossa capacidade de análise tanto relativamente às propostas e estratégias pelas quais optamos, como face à avaliação do desempenho dos estudantes.
Não é um exercício isento de dor, como se depreende do testemunho de JSN, mas é um exercício decisivo para lidar com algumas das nossas frustrações, acalentar as nossas esperanças e encontrarmos, afinal, um sentido cultural e formativo relativamente ao trabalho que realizamos enquanto docentes. Exige de nós disponibilidade, mas, sobretudo, exige que nós professores estabeleçamos uma outra relação com o conhecimento.
Num livro que eu e a Ariana escrevemos em conjunto (Trindade & Cosme, 2024), recorremos ao xadrez para defender que os professores não poderão ser identificados com aqueles jogadores que se limitam a conhecer, apenas, as regras e os movimentos básicos do jogo. Aí defendemos que o que se espera de um professor, tal como de um hábil jogador de xadrez, é que seja capaz de compreender “as subtilezas, as artimanhas e as agudezas do ataque e da defesa” e “a técnica de prever, de combinar ou de ripostar”, para além de desenvolver as competências necessárias que lhe permitam calcular antecipadamente o impacto de uma jogada que se iniciou quatro ou cinco lances atrás. Não é suficiente uma visão instrumental quer do jogo, no caso do xadrezista, quer do conhecimento, no caso do docente. É vital que ambos se mostrem capazes de assumir uma visão estratégica capaz de leituras ou de ações mais amplas e consistentes que não conduzam, nem um nem outro, a um desempenho à mercê dos acasos e das circunstâncias.
Referências bibliográficas
Nunes, João Sedas (1999). Desencontros: A propósito do sentido que a Sociologia não faz. In Associação Portuguesa de Sociologia (Orgs.), A Sociologia e o Ensino Secundário (99-116). Oeiras: Celta Editora
Trindade, Rui; & Cosme, Ariana (2024). Escola e conhcimento: O vínculo incontornável. Porto: Porto Editora.