O livro «Aprender»: Conhecimentos versus Competências
A dicotomia que, na obra «Aprender», Nuno Crato (N.C.) estabelece entre conhecimentos e competências é uma atitude recorrente que este autor assumiu quer no livro que publicou em 2006 (Crato, 2006), quer na entrevista que concedeu, em 17.09.2021, ao «Diário de Notícias» (DN), onde defende que através da noção de competências “se valoriza mais o raciocínio do que o conhecimento” (p. 5). No livro que agora constitui o objeto de análise volta ao mesmo assunto, afirmando que a “teoria das competências” (Crato, 2006, p. 66) constitui quer uma manifestação de desprezo pelos conteúdos quer uma teoria que constitui um equívoco porque “sobrevaloriza a ‘contextualização das aprendizagens’” (idem, p. 68) como condição educativa a respeitar.
Independentemente do facto de pensar que, em 2006, a sua leitura sobre a dita teoria das competências poderia ser objeto de um outro tipo de leitura, aceito que N.C. pudesse afirmar o que afirmou, ao contrário do que acontece na entrevista ao DN, onde ignora que a noção de competência que é proposta, em 2017, no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (PASEO), passou a assumir, de forma explícita e deliberada, que o conhecimento constitui um dos componentes estruturantes dessa noção, a par das capacidades e das atitudes.
No livro «Aprender», de 2024, apesar de não mencionar o PASEO, N.C. mostra que conhece essa abordagem sobre as competências, pelo menos através dos documentos da OCDE, dos quais transcreve uma citação onde se afirma que estamos perante um artefacto concetual que “envolve mais do que a aquisição de conhecimentos e capacidades (skills); envolve a mobilização de conhecimento, capacidades, atitudes e valores. (OCDE, 2018:5)” (idem, p. 89). Por isso, não é por ignorar esta formulação da noção de competências que Crato a atrela a uma outra, a partir da qual insiste, citando Glaesser, que as “competências seriam «o saber em ação»” (Crato, 2024, p. 87), desprezando o facto desta última definição ser contraditória com aquela que seleciona para ilustrar o que a OCDE propõe sobre o mesmo assunto.
Só é importante chamar a atenção para esta contradição porque ela permite compreender a perspetiva e a estratégia argumentativa de N.C. quando se refere à noção de competências como um referente curricular. Na verdade, apesar da forma clara como a OCDE explicita o que entende por competências, Crato considera que a leitura deste organismo contribui para consolidar a tese de que “tudo são competências, incluindo o conhecimento” (idem, p. 89), o que o conduz a perguntar se as competências “englobam conhecimentos, capacidades e valores, que estamos a dizer quando introduzimos competências no ensino? Será o mesmo que introduzir ensino no ensino? Toda a discussão se torna inútil” (idem, p. 89-90).
Confesso que a dificuldade em compreender este argumento se dissipou, abruptamente, perante uma nova pergunta de N.C., em função da qual ele se interroga se “devemos ter um ensino orientado pelas competências, ou seja, pelo desenvolvimento das capacidades de ação, ou devemos ter um ensino orientado pelo conhecimento?” (idem, p. 90). Só neste momento, compreendi que N.C. distorcia deliberadamente o conceito de competência proposto pela OCDE, identificando abusivamente capacidades com competências, de forma a poder legitimar a pergunta atrás enunciada e a concluir, na sequência da mesma, que “Não tenho dúvidas: o ensino deve ser sobretudo orientado pelo conhecimento, devemos ter um currículo baseado no conhecimento, um currículo em que a sequência das matérias é guiada pela lógica do conhecimento” (ibidem).
É reconhecendo isto que, mais do que me centrar nesta afirmação, prefiro enfrentar a questão que a viabiliza, chamando a atenção para o facto, em si mesmo decisivo, da OCDE clarificar, sem ambiguidades, que a noção de competência por si proposta não permite pressupor nenhum tipo de desprezo pelo conhecimento. Pelo contrário, numa tal definição reconhece-se que não há desenvolvimento de competências dissociado de um objeto do saber, das estratégias heurísticas que a relação com estes objetos suscita e, ainda, dos quadros concetuais que permitem conferir forma e substância tanto a esses objetos como a essas estratégias. Nuno Crato não é capaz de ver isto porque, na verdade, não pode. Isso colidiria com as conceções que tem vindo a defender acerca do que é ensinar, aprender e avaliar. Estamos a falar de alguém para quem a memorização, a mecanização e a acumulação prévia de definições, de conceitos e de convenções constitui obrigatoriamente a primeira fase das aprendizagens em qualquer disciplina académica e um fim em si mesmo. É que, segundo ele, quando somos alunos “nunca sabemos para que nos vai servir o conhecimento. Só o descobrimos mais tarde. Não podemos saber de que modo os conceitos se vão ligar no futuro, só o podemos compreender em retrospetiva. Temos de acreditar em algo - no nosso instinto, no destino, na vida, no que seja” (idem, p. 57).
É esta crença de que o ato de aprender dispensa o facto de ser culturalmente significativo que explica porque Nuno Crato se mostra incapaz de compreender que as competências como referente curricular não só não penalizam a apropriação do conhecimento, enquanto tarefa de aprendizagem incontornável, como contribuem para que essa apropriação, de facto, ocorra. Importa é não confundir competências com capacidades e atitudes, assim como importa, também, ter uma justificação culturalmente e pedagogicamente plausível para se perguntar “o que é uma «rede hidrográfica» ou que corrente literária se inseria Alexandre Herculano?” (idem, p. 88). Ou seja, não estando nós impedidos de o fazer, enquanto professores, é necessário que, no âmbito da nossa ação como docentes, sejamos capazes de explicar claramente porque é que propomos um tal exercício aos nossos alunos.
Referências
Crato, Nuno (2006). O ‘eduquês’ em discurso directo: Uma crítica da pedagogia romântica e construtivista. Lisboa: Gradiva.
Crato, Nuno (2021). Entrevista. In «Diário de Notícias», 17.09.2021.
Crato, Nuno (2024). Aprender. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.