O livro «Aprender»: O estatuto do conhecimento culturalmente validado
“Quanto mais rico for o conhecimento de base do estudante, mais rico será o significado que pode extrair da proposição que foi transmitida” (Crato, 2024, p. 64), afirma Nuno Crato, para evidenciar a importância do conhecimento culturalmente validado como um fator educativo incontornável no âmbito dos projetos de educação escolar.
Perante esta postura diria, como A. Kitson (2021) o faz a propósito de Hirsch, que a valorização desse tipo de conhecimento é necessária, é correta, mas pode não ser suficiente. Uma proposição que pode ser melhor compreendida quando vemos Crato (2024) defender que é “o conhecimento que permite adquirir mais conhecimento” (p. 44) ou que “a estrutura do currículo deve ser o conhecimento, não as ditas competências” (idem, 91).
Trata-se de uma perspetiva que, de acordo com a reflexão que Kitson (2021) promove a propósito da disciplina de História, ao valorizar, exclusivamente, os conhecimentos de primeira ordem, vulgo conteúdos, marginaliza o desenvolvimento das formas de pensar e de agir específicas daquela disciplina como objetivos educacionais que não deveriam ser subalternizados. É que tomar consciência da noção de tempo histórico, começar a pensar a mudança em História, compreender como se concebem as causas dos acontecimentos ou, ainda, aprender a coletar e a interpretar os dados, bem como a comprovar as evidências na disciplina em questão, são aprendizagens, relacionadas com o que Kitson (idem) designa por conhecimentos de segunda ordem, que afetam o potencial formativo das experiências educativas em História.
A dissociação que Crato estabelece entre conteúdos e o que designa por competências permite compreender, então, que o autor identifica o conhecimento culturalmente validado com um “corpo de saberes recebido e herdado do passado, definido como inefável, com qualidades intemporais e não sendo passível de qualquer tipo de questionamento” (idem, p. 37). Trata-se de uma conceção circunscrita sobre esse tipo de conhecimento, cujas implicações curriculares e pedagógicas importa reconhecer, dado que se tende a reduzir as aprendizagens dos alunos ao domínio dos conteúdos, como se estes garantissem, inevitavelmente, o desenvolvimento das capacidades cognitivas e metacognitivas que permitem mobilizar, interpretar, pesquisar e utilizar a informação que se veicula no âmbito das tarefas que os estudantes têm de realizar.
Se estou de acordo com N. Crato quando este defende quer que a procura na internet exige que quem o faz seja detentor do saber necessário para concretizar uma tal procura, quer que “é necessário muito conhecimento rapidamente mobilizável para interpretar a informação dispersa que se obtém quase instantaneamente na internet” (idem, p. 47), afasto-me, no entanto, da sua perspetiva quando sou obrigado a reconhecer que um processo de pesquisa na internet também depende, para ocorrer de forma esclarecida e consequente, tanto dos confrontos concetuais e empíricos que um sujeito tem de estabelecer com a informação a que acede, como das inferências, das categorizações e, entre outras operações, das generalizações que se produzem para realizar uma tal pesquisa.
Por isso é que discordo que a posse da informação garanta, só por si, a possibilidade de adquirir mais informação. É que uma tal possibilidade está dependente do desenvolvimento dos já referidos conhecimentos de segunda ordem que, dada a sua importância no âmbito do processo de aprendizagem dos alunos, necessitam, em primeiro lugar, de ser explicitamente definidos como objetivos educacionais a atingir e, em segundo lugar, operacionalizados de forma congruente com a racionalidade epistemológica de cada área de saber, através do modo como se organiza e gere o trabalho pedagógico em cada uma das disciplinas que integram os planos de estudo.
Em suma, não chega, por isso, valorizar o conhecimento culturalmente validado como um fator educativo circunscrito aos conteúdos das diferentes disciplinas. Trata-se de uma opção que contribui para empobrecer as experiências educativas nas escolas, no momento em que impede que os alunos possam viver aprendizagens mais amplas, exigentes e congruentes, impedindo, igualmente, que sejam desafiados a confrontar-se com outros modos de pensar, de se relacionar e de agir de forma mais coerente com os desafios e as exigências culturais, pessoais e sociais para a qual a vida, hoje, nos convoca.
Referências
Crato, Nuno (2024). Aprender. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Kitson, Alison (2021) How helpful is the theory of powerful knowledge for history educators? In Chapman, Arthur (Ed.), Knowing History in Schools: Powerful knowledge and the powers of knowledge (32-51). London: UCL Press.