O livro «Aprender»: O estatuto do conhecimento experiencial dos alunos
Um outro problema da visão de Crato que decorre, ainda, da perspetiva circunscrita que propõe para abordar a importância do conhecimento culturalmente validado tem a ver com o facto de ignorar a tensão entre este tipo de conhecimento e o conhecimento experiencial dos alunos.
Apesar de também eu defender que é o conhecimento culturalmente validado que constitui a referência do trabalho formativo que aos professores compete desenvolver, isso não significa que os interesses, saberes e modos de pensar e de agir dos alunos devam ser ignorados. Se uma tal afirmação de princípio não visa justificar a demissão cultural e educativa dos professores, também não permite legitimar a possibilidade do trabalho educativo dos docentes se definir como uma ação em que estes se limitem a “mostrar, sem revelar ou desvelar, aos indivíduos uma presença nova: a presença dos conteúdos estendidos. (...). É que a mera captação dos objetos como coisas é um puro dar-se conta deles e não ainda de conhecê-los” (Freire, 2001, p. 28).
Creio que é através da noção de “momento pedagógico” (Meirieu, 2002, p. 57) que se pode compreender melhor o que está em jogo. Para Meirieu (idem), um tal momento define-se como uma ocorrência cultural e epistemológica inevitável, decorrentes do confronto dos alunos com outras perspetivas e respostas diferentes daquelas que decorrem do património de saberes que são os seus, os quais foram construídos, muitas vezes, de forma tácita, em função das suas experiências de vida e de referentes epistemológicos diferentes daqueles que sustentam as abordagens que foram ou são objeto de um processo de validação cultural intencional e explicitamente construído.
Nesta abordagem, propõe-se que o professor se assuma como um agente educativo que, em vez de aniquilar os alunos, decide desafiá-los e apoiá-los no confronto que na Escola importa estabelecer entre o seu conhecimento experiencial e o conhecimento culturalmente validado. Trata-se de uma oportunidade que pode conduzir os docentes a “explorar sem tréguas os obstáculos inerentes aos ao seu próprio discurso, circunscrever as formulações aproximativas, buscar incansavelmente exemplos e dispositivos novos, multiplicar as reformulações inventivas, as «mudanças de quadro», como dizem os especialistas em didática da Matemática, ou as «descontextualizações», como dizemos nós” (idem, p. 80). Um encontro que permita oferecer aos alunos um objeto de saber do qual estes se possam apoderar, “para examiná-lo, para pegá-lo nas mãos, para manipulá-lo, para apropriar-se dele ou desvirtuá-lo, enfim, para pôr «algo de si nele»” (idem), já que, assim, o professor terá “multiplicado os «pontos de apoio» e aberto perspetivas que constituirão os meios para o aluno exercer a sua inteligência” (idem, p.63).
Estas são preocupações estranhas à reflexão que Nuno Crato (N.C.) propõe. Se este recusa que os professores ignorem os alunos que têm pela frente, manifestando-se contra as práticas educativas de “professores que não davam um único exemplo, que não clarificavam de início os temas sobre que iam falar durante as aulas, que explicavam geografia sem mapas, que explicavam história sem referir os locais dos acontecimentos, que obrigavam a decorar as sequências de reis e chefes de Estado” (Crato, 2024, p. 97), isso não significa, nada mais, nada menos, do que defender, apenas, a necessidade dos docentes assegurarem a recetividade dos seus estudantes para os discursos que proferem e para as ações pedagógicas que dinamizam. Por isso, é que Crato valoriza a importância dos exemplos, dos mapas, dos discursos organizados, bem como da necessidade de “fazer perguntas aos alunos e levá-los a refrasear explicações” (ibidem).
Defender o protagonismo dos estudantes como condição educativa a respeitar é algo diferente daquilo que N.C. propõe. Se o fizesse teria de abordar o conhecimento experiencial de que aqueles são portadores não como um obstáculo a transpor mas, antes, como uma condição curricular e pedagógica estruturante que, afinal, constitui a expressão de que estamos perante um processo de aprendizagem em marcha, marcado por vicissitudes diversas, a partir das quais se vislumbram avanços, recuos e conflitos.
Em conclusão, nada tenho a opor, bem pelo contrário, ao facto de N.C. atribuir a importância que atribui ao conhecimento culturalmente validado. O meu distanciamento face à sua perspetiva, tentei-o explicar neste e no texto anterior, radica quer no facto de circunscrever aquele tipo de conhecimento aos conteúdos, quer no facto de, no âmbito do processo de apropriação desse conhecimento, não valorizar o conhecimento experiencial dos alunos como um fator educativo que não pode ser ignorado.
Referências
Crato, Nuno (2024). Aprender. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Freire, Paulo (2001). Extensão ou comunicação? S. Paulo: Paz e Terra.
Meirieu (2002). A pedagogia entre o dizer e o fazer. Porto Alegre: Artmed.