O livro «Aprender»: Que teoria da aprendizagem ?
No confronto que estabelece entre o livro «Aprender» (Crato, 2024) e o «Eduquês em Discurso Direto» (Crato, 2006), Nuno Crato (N.C.) afirma, no epílogo da primeira obra, que se preocupou mais em defender as ideias certas do que em denunciar as ideias erradas.
Não irei discutir se conseguiu materializar um tal propósito, ainda que reconheça que estamos perante duas obras que se constroem a partir de recursos argumentativos diferentes. Pode considerar-se que «O Eduquês em Discurso Direto» foi construído como uma manifestação de militância pedagógica, enquanto o «Aprender», pese o seu proselitismo, é um livro mais cuidado do ponto de vista do esforço de legitimação teórica que nele se empreende. Neste âmbito assumem particular importância as menções à psicologia cognitiva moderna que é utilizada por N. Crato quer para pôr em causa “a visão antiga de construção autónoma do conhecimento pelos alunos” (idem, p. 102) quer para reforçar “a importância do currículo, pois esse é o guia da aprendizagem” (idem, p. 103).
Infelizmente, o único autor que Crato identifica para suportar a sua tese é David Ausubel. Conhecendo como conheço a perspetiva deste psicólogo norte-americano, imagino que a mesma seja particularmente simpática para N.C., no momento em que contribui para reabilitar as aulas expositivas como instrumento de ação pedagógica. Ainda que Ausubel (2023) defenda que há outros tipos de aprendizagem a considerar, por memorização e por descoberta, é a aprendizagem por receção significativa que constitui, na verdade, a sua principal preocupação.
Numa primeira leitura pode considerar-se, então, que a apropriação da obra de Ausubel por parte de Crato, mesmo tendo os seus ângulos mortos, é aceitável. O problema maior tem a ver, contudo, com a alegação de que Ausubel e, de um modo geral, aqueles que se situam no campo delimitado pela psicologia cognitiva, atribuem uma grande importância ao currículo, quando se sabe que o currículo, para muitos dos que se situam neste campo, não passa de uma variável de contexto cuja utilidade se afere pelo modo como constitui um instrumento ao serviço do desenvolvimento das capacidades e das estratégias cognitivas e metacognitivas dos alunos. Uma perspetiva que, em princípio, deveria ser contraditória com o estatuto que Crato atribui ao conhecimento, não fosse o caso da preocupação deste autor ter mais a ver com a transmissão do conhecimento do que com o conhecimento em si mesmo. Ou seja, Ausubel serve-lhe para definir o algoritmo desse processo de transmissão, em função do qual Crato define a gestão do processo de ensino e de aprendizagem como um processo que assenta, por um lado, na mobilização de procedimentos e estratégias de ensino universais que garantam a ação instrucionista dos professores e, por outro, na atomização das atividades escolares, cuja subdivisão em pequenas unidades didáticas visa garantir o melhor controlo daquela ação e dos seus resultados.
Face ao exposto, constata-se que a teoria da aprendizagem de Crato, por mais paradoxal que possa parecer, negligencia o estatuto do conhecimento culturalmente validado como fator educativo primordial no âmbito dos projetos de educação escolar. No texto que escrevi neste blogue, dedicado especificamente a este tema, defendi que N.C. circunscreve o conhecimento aos conteúdos tendendo a desvalorizar as capacidades e atitudes como componentes incontornáveis do primeiro. Se uma tal abordagem constitui um problema epistemológico e educativo a valorizar, a situação agrava-se quando Crato recorre à psicologia cognitiva para propor um algoritmo processual cujas vulnerabilidades culturais são denunciadas por Bruner (2000), no confronto que este estabelece entre a abordagem computacionalista e a abordagem culturalista.
Tendo como referência a perspetiva de Bruner, Ausubel enquadrar-se-ia no espaço concetual que o computacionalismo permite configurar, o qual se carateriza por conceber a mente humana em função do modo como esta permite recolher, armazenar e utilizar a informação, a partir das “instruções de uma unidade central de comando” (idem, p. 17), sem lhe interessar “se são palavras dos sonetos de Shakespeare ou números de um quadrado numérico aleatório” (idem, p. 17-18). É como se o processamento de informação pudesse ser dissociado dos instrumentos simbólicos que um sujeito tem ao seu dispor para pensar e agir, perante desafios concetuais e praxeológicos que remetem para uma relação de familiaridade com universos culturais e epistemológicos específicos. Estamos num domínio onde as teorias da aprendizagem podem ser conjugadas como “’TOE’s, acrónimo de theories of everything” (Bruner, 2000, p. 23). Isto é, teorias que, por um lado, nos remetem para um universo isento de ambiguidades, onde “as alterações têm também de manter uma
sistematicidade consistente e preestabelecida” (ibidem) e, por outro, dispensam reconhecer as particularidades do conhecimento culturalmente validado como um fator que interfere de forma substancial no modo como se pensa e como se age.
O que Nuno Crato nos mostra no livro «Aprender» é que o instrucionismo curricular e pedagógico tem necessidade de propor argumentos mais sofisticados para impor as propostas que o caraterizam. Neste caso, recorre à psicologia cognitiva para, em nome do conhecimento científico, tentar legitimar uma tal imposição, dado que a ciência, aqui, não é um recurso para estabelecer um diálogo mais sustentado, credível e consequente, mas um instrumento que se mobiliza para silenciar e desqualificar outras abordagens legítimas sobre a mesma problemática.
Nem o conhecimento científico deveria servir para isto, nem o modo como NC o utiliza é suficientemente credível para o fazer. Falta-lhe amplitude, contexto e rigor. Diga-se em abono da verdade que este não é um pecado exclusivo do autor. Noutras latitudes, até opostas àquelas onde Crato se situa, é possível também verificar-se a adoção do mesmo tipo de expedientes (Ver os discursos sobre estilos de aprendizagem, inteligências múltiplas, aprendizagens experienciais, etc.), o que nos mostra como o modelo fast food tende a empobrecer os debates educativos, gerando soluções que se circunscrevem, afinal, à botoxlização da reflexão e da ação educativa.
Referências
Ausubel, D. P. (2003). Aquisição e retenção de conhecimentos: Uma perspectiva cognitiva. Lisboa: Plátano Edições Técnicas.
Bruner, Jerome (2000). Cultura da Educação. Lisboa: Edições 70.
Crato, Nuno (2006). O ‘eduquês’ em discurso directo: Uma crítica da pedagogia romântica e construtivista. Lisboa: Gradiva.
Crato, Nuno (2024). Aprender. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.