”Uma coisa importante a fazer seria começar pela crítica ao próprio conceito de “literacia”, a toda a lógica que o envolve, e aos efeitos que a obsessão pela literacia produz. A “crise da literacia” foi diagnosticada com grande preocupação nos Estados Unidos, nos anos 80 do século passado. Trata-se de uma questão de “competência” (outra palavra-fetiche) numa área restrita. Pode-se ser muito competente na leitura de Proust e, no entanto, não ser dotado da mínima competência informática, o que, nosso tempo, será considerado como uma forma de analfabetismo. É verdade que a literacia testada no inquérito da OCDE, agora divulgado, diz respeito à compreensão e interpretação de frases simples e à “competência” para efectuar operações aritméticas elementares. Mas não faltam especialistas nesta matéria que nos dizem que é por a escola estar cada vez mais focada em literacias específicas que ela produz cidadãos iletrados”
António Guerreiro (Público,10.01.2025)
Depois de dois textos focados na análise dos resultados do PIAAC, parece-me que faz sentido discutir, inspirado no texto de António Guerreiro (AG), se o desenvolvimento da(s) literacia(s) deve constituir um objetivo educativo das escolas.
Pertenço ao grupo daqueles que defendem que o desenvolvimento das literacias matemática, científica, visual, motora, geográfica, histórica, entre outros, deveria constituir-se como a principal referência e finalidade do trabalho educativo a realizar naqueles contextos. Proponho-o em nome da necessidade de, em tais contextos, se definir o confronto entre o conhecimento experiencial dos estudantes e o conhecimento culturalmente validado como o principal desafio que estes e os seus professores têm pela frente. Deste modo, este último tipo de conhecimento deixaria de ter um estatuto próximo de uma língua morta, para ser mobilizado como um instrumento de afirmação e construção da inteligência e da humanidade desses alunos e daqueles alunos e daqueles professores. Assim, através da eleição do desenvolvimento da(s) literacias(s) como objetivo educativo, para além de ser resolver, de uma vez por todas, os equívocos e as ilusões que modelam uma parte significativa dos discursos sobre a importância quer do desenvolvimento das competências socioiemocionais quer do papel pedagógico da Inteligência Artificial, criar-se-iam as condições para que as escolas se afirmassem definitivamente como espaços potenciadores de aprendizagens culturalmente significativas.
Como é que esta perspetiva se coaduna com as interrogações com que AG nos confronta? Será que, como AG insinua, há, ao nível das escolas, uma correlação entre a produção de cidadãos iletrados e o investimento de literacias específicas? No mundo em que vivemos, até que ponto não é abusivo considerar como analfabeto um especialista em Proust, se este não for dotado de competências informáticas?
Começando pela relação entre os desenvolvimentos das literacias específicas e do iletrismo, diria que esta é uma possibilidade a ter em conta se ficarmos confinados ao modelo de desenvolvimento da literacia que a OCDE tem vindo a difundir. Um modelo que se carateriza quer pela sua natureza tecnocrática quer pelo modo como contribui para instrumentalizar o conhecimento culturalmente validado, mesmo que se possa reconhecer que contribui, a seu modo, para contrariar a abordagem que o paradigma pedagógico da instrução propõe sobre este tipo de conhecimento, no momento em que o remete para um papel menor quer como instrumento de seleção académica quer como instrumento de disciplinarização atitudinal circunscrita dos alunos. É a partir desta leitura que compreendo e saúdo a advertência de AG, uma vez que, num tal modelo, o desenvolvimento da(s) literacia(s) tende, em nome da especialização tecnocrática, a patrocinar a possibilidade ilusória de, através do conhecimento especializado, tomarmos posse dos algoritmos que nos permitirão aceder às opções ditas corretas e a acionar respostas tidas como infalíveis.
Por isso não me preocupa tanto se um leitor competente de Proust pode ser considerado um analfabeto devido às suas carências informáticas. Este é um problema que não me inquieta. O que me me preocupa é se um tal leitor, ao entrar no universo do autor de «Em busca do tempo perdido», passa a estar mais disponível para compreender os meandros das vicissitudes e dos dramas da condição de se ser humano no mundo e nas sociedades em que vivemos. Como é que o conhecimento da obra de Proust permite induzir uma visão mais cosmopolita do mundo e dos outros com quem partilhamos este mesmo mundo?
Estas são questões que nas escolas tendem a ser ignoradas quanto à relação que aí é proposta entre os seus alunos e, entre outros, os textos literários.
Por fim, importa que sejamos capazes de interpelar o pressuposto em função do qual se defende que, para o PIAAC, só um indivíduo que leia e compreenda textos longos e densos é que atinge o nível mais elevado de competências em literacia. Até que ponto este é um objetivo exequível? Não é, dado que a capacidade de leitura, de interpretação e de análise crítica de um texto não pode ser dissociada do conhecimento que qualquer um de nós possui para realizar essas tarefas. Não reconhecer este pressuposto significa que, ao aceitar-se que o desenvolvimento da literacia pode ocorrer de forma epistemologicamente decontextualizada, se legitima um equívoco e se propõe, assim, um desafio que só aos deuses diz respeito.