Um ‘estudo’ que é uma vergonha. Precisamos de outras imagens da profissão docente
O título que encima este «post» é o do texto que, hoje, decidi partilhar convosco. Um texto redigido por José Matias Alves que, originalmente, foi publicado no jornal «Público» em 11.02.2025.
Este é um texto onde o nosso colega Matias Alves procede à análise de um trabalho de uma entidade denominada «Missão Escola Pública», através do qual esta organização pretende denunciar os efeitos do bulliyng a que estão sujeitos os professores das escolas públicas portuguesas. Trata-se de um texto que vale a pena (re)ler, dado que, entre outras coisas, constitui mais um exemplo das vulnerabilidades que afetam, hoje, o debate educativo. Daí uma palavra de agradecimento ao Matias Alves e os desejos de uma boa leitura.
”O autointitulado estudo “Instantâneos da Escola Pública: Inquérito Bullying a professores - Conclusões iniciais” realizado pela Missão Escola Pública traça sobre a profissão docente uma imagem de miséria e proletarização, contribuindo de forma expressiva para a sua desvalorização e desprestígio social.
As mensagens nucleares do relatório que foram intensamente mediatizadas são as seguintes: 59% dos professores relataram ter sido vítimas de bullying no ambiente escolar; as agressões verbais (63,3%) e as ameaças (47%) são as formas mais comuns de bullying; a maioria dos casos de bullying provém dos alunos (57,2%), seguidos por pais e encarregados de educação (53,5%); 15% dos professores já estiveram de baixa médica devido ao bullying; 43% dos professores relataram coação, com 59% desses casos atribuídos às direções escolares; maior incidência de bullying ocorre em Lisboa (26,3%), seguida pelo Porto (18,1%) e Setúbal (15,4); as mulheres são mais afetadas pelo bullying (62%) e os professores na faixa etária de 51-60 anos são os mais afetados (45%).
Nesta breve nota analítica quero sustentar o seguinte:
i) o “estudo” não é representativo da classe docente. Obter 2529 respostas pode refletir a “estratificação da amostra e a diversidade da classe docente em Portugal”, mas o modo de inquirição e a obtenção das respostas não podem confirmar a representatividade do estudo.
ii) Por isso, não é possível afirmar que a “análise dos dados revela que 59% dos professores já se sentiram vítimas de bullying no ambiente escolar.” (p.4) O que é realmente preocupante é o descrédito do estudo e de quem o promove e o desacreditar ainda mais de uma classe que é apresentada como uma vítima generalizada das políticas, dos alunos, dos pais e das “direções” das escolas. Ora esta imagem nefasta tem de ser contestada e precisa de ser resgatada da miséria da proletarização e do senso comum.
iii) o “estudo” refere que “existem relações de poder desequilibradas, que podem resultar em situações de violência contra os educadores”. (p.2). É evidente que existem relações de poder assimétricas. Há também dados empíricos suficientes para sustentar que as bases de poder e de autoridade são muito superiores às dos alunos. Não parece, pois, legítimo afirmar que este “desequilíbrio” se vira contra os professores, sendo muito mais provável o inverso.
iv) sustenta-se ainda que “a maioria dos casos [de bullying] provém dos alunos (57,2%), seguidos por pais e encarregados de educação (53,5%). (p.4). Em relação a este dado (e aos outros) era muito importante saber todos os itens que constituem o inquérito, conhecer os processos de validação metodológica da inquirição para se avaliar a credibilidade científica do questionário. É, pois, legítima e sustentável a dúvida de viés metodológico e produção de resultados em função das perguntas que se fazem e de uma agenda que se quer esconder.
v) afirma-se, ainda, que “em relação à coação e às ameaças, 43% dos professores afirmaram ter sido vítimas de coação, sendo que 59% desses casos têm origem nas direções escolares.” A nuvem concetual em que se enreda a pergunta e a resposta é de elevada gravidade. A direção é um conceito ambíguo, impreciso e em rigor inexistente. Afirmar que “a violência institucional [praticada pelas direções] identificada neste estudo é particularmente grave, pois mina a autoridade e o bem-estar dos docentes, afetando diretamente a qualidade da educação” é muito grave, pois se produz uma afirmação sem base empírica sustentável e se condena a ação dos dirigentes escolares de forma gratuita e irresponsável. Aliás, ainda noutra passagem do relatório afirma-se “a necessidade urgente de medidas de segurança mais eficazes, apoio psicológico para os docentes e a intervenção nas direções escolares”, parecendo-se reclamar a presença da Inspeção-Geral da Educação junto das “direções escolares”. Este tópico é recorrente, parecendo ser um alvo a abater. Na página 7 do relatório afirma-se mesmo: “um dado chocante do estudo é a evidência de que as direções escolares (…) são apontadas como principais perpetradoras de coação e ameaças contra os docentes. Este dado não só sublinha uma crise de liderança dentro das instituições, mas também reflete a falta de medidas preventivas e punitivas para aqueles que abusam de sua posição hierárquica. As direções escolares devem ser responsabilizadas pela criação de um ambiente seguro e saudável para os professores, assim como pela implementação de estratégias eficazes para a gestão de conflitos. (p. 7).
vi) sustenta-se, também os professores “dos grupos de Matemática e Português são, sem surpresa, os que relatam mais casos de bullying.”. E diz-se, “sem surpresa” porque se sustenta uma associação entre as taxas de reprovação e a prática de bullying. Ora, não há qualquer evidência dessa relação, sendo o mais plausível o maior número de respondentes destes grupos. Aliás, também se sinaliza uma elevada taxa de vítimas de docentes do 1.º ciclo e aqui já não é usado o argumento que deu jeito usar no caso das disciplinas citadas”.
O texto termina com uma afirmação tão clara quanto pertinente de Matias Alves, para quem “este tipo de «estudos» desviam os professores de uma missão essencial. A de construir a sua autoridade e o seu prestígio no interior da profissão. A de afirmarem o seu conhecimento científico e pedagógico como um bem de primeira necessidade. A de estabelecerem relações saudáveis com os seus alunos e respetivos encarregados de educação. A de criarem ambientes de aprendizagem onde todos possam ser membros de comunidades educativas saudáveis e responsáveis. Porque os professores precisam de ser reconhecidos e apoiados a vários níveis. Mas precisam, acima de tudo, de se afirmar como autoridades no espaço público. E para isso não precisam de psicólogos e de decretos. Só precisam, essencialmente, de um profissionalismo interativo e construtivo”.