Uma viagem no tempo: As atribulações de Ana, dos seus colegas e professores no Ensino Secundário
Em Agosto, tempo de férias, decidi ressuscitar algumas das crónicas que se encontram publicadas num livro intitulado «Isso vai sair no teste?» que, em 2003, integrava os Cadernos do CRIAP, um projeto animado pelo Matias Alves na editora ASA.
Trata-se de um conjunto de narrativas ficcionadas que foram sendo escritas mensalmente, por mim e pela Ariana, no jornal «a Página da educação», para falarmos dos paradoxos e dos absurdos, das tensões e das contradições com os quais fomos sendo confrontados, na primeira pessoa, quando a nossa filha mais velha entrou para o 10 º ano, em 1998. Como revelamos na introdução da obra, nós já conhecíamos alguns estudos sérios e competentes sobre a falta de sentido dos cursos do Ensino Secundário que se encontravam vocacionados para o prosseguimento de estudos. Nós “ouvíamos os desabafos de amigos e colegas nossos e dos seus filhos. Conhecíamos o mal-estar de muitos professores e a angústia que deles se apossava a partir, pelo menos, de cada Maio que neles parecia não poder florir” (Trindade & Cosme, 2003, p. 7). Com a matrícula da Tatiana no Ensino Secundário chegou a nossa vez de reconhecer que as palavras nem sempre são capazes de exprimir, só por si, o desperdício de inteligência e de humanidade, o sofrimento inútil ou a falta de sentido de muitas iniciativas curriculares e pedagógicas que marcam a vida dos estudantes e dos seus professores no ciclo de escolaridade em questão.
Diria que as crónicas começaram por ter um valor terapêutico, mas à medida que iam sendo escritas assumiram um papel decisivo como instrumentos de reflexão que nos permitia ir dando forma a “um universo de penumbras, complexo e humano, por vezes rasteiro, noutras circunstâncias excecional” (idem, p. 8).
Durante este mês de Agosto decidi voltar a essas crónicas onde se narra as atribulações de Ana no Ensino Secundário, bem como de alguns dos seus colegas e, também, dos seus professores. Olhando hoje em retrospetiva, a partir do ano de 2025, não temos dúvidas que houve mudanças significativas naquele nível de ensino. Passou a fazer parte do período de escolaridade obrigatória, diversificou-se e viu crescer, de forma decisiva, os Cursos Profissionais. Apesar dessas mudanças evidentes, manteve-se a sua subordinação funcional ao Ensino Superior, sobretudo nos cursos que se encontram vocacionados para o prosseguimento de estudos e, pior do que isso, tenho a sensação que uma tal ocorrência tornou-se objeto de aceitação tácita.
Em Agosto, mês de férias, não é minha intenção, contudo, ressuscitar o debate sobre as finalidades do Ensino Secundário. O que pretendo é olhar para as 18 crónicas que eu e a Ariana escrevemos para selecionar aquelas que possam revelar situações, muitas vezes, irónicas, que nos revelem como a Escola é um espaço de desencontros mas também de encontros entre professores, entre alunos ou entre professores e alunos que vão coexistindo, aqui e ali, com mães e pais angustiados. É a humanidade do espaço escolar que importa compreender mesmo quando este espaço parece ser tão desumano. Um espaço onde é possível encontrarmos personagens como, por exemplo, Judite, professora de Português, que se penaliza, a dado momento, com a sua atitude perante as críticas que Ana tece ao programa da disciplina.
“Ainda se lembra do rubor na face da pequena quando lhe respondeu, abruptamente, que a achava muito nova para opinar sobre o que se deveria, ou não, aprender naquela disciplina. A miúda apenas se tinha limitado a perguntar porque é que em vez da poesia do Jerónimo Baía não liam e discutiam antes a poesia de Almada Negreiros. Se o tom levemente arrogante com que a questão havia sido formulada, explica, em parte, a sua atitude, não chegava, contudo, e de algum modo, para justificar a sua reação. Em primeiro lugar porque, independentemente da legitimidade ou da falta de legitimidade de um aluno para questionar os conteúdos programáticos, a questão fazia todo o sentido. Em segundo lugar, quando uma aluna coloca uma questão desse tipo, não deveria merecer uma resposta crispada. Em terceiro lugar, porque ela própria havia colocado questões idênticas noutras situações em que se confrontara com o desinteresse dos seus alunos e os parcos resultados obtidos com muitos outros, aqueles cujas notas nos finais dos períodos lhes permitia serem considerados como estudantes de sucesso.
Para que servia, afinal, um Ensino Secundário onde se continuavam a desperdiçar tantas vidas e, quem sabe, quantos talentos? Neste jogo de meias tintas, onde muitas vezes alguns fingiam que aprendiam e outros faziam de conta que ensinavam, o que lhe restava fazer?
Para esta pergunta não tinham nem as respostas optimistas de Helena nem conseguia, tão pouco, manifestar a indiferença de outros colegas face a estas e a outras questões. Tinha consciência, apenas, da desilusão que a apoquentava perante um quotidiano escolar que era, por vezes, excessivamente, vazio quer para si, como professora, quer para os seus alunos, fossem estes bem ou mal sucedidos” (idem, p. 16-17).
Referência bibliográfica
Trindade, Rui; & Cosme, Ariana (2003). Isso vai sair no teste?. Porto: Edições ASA (Cadernos CRIAP 36)
Excelente.