Viagem no tempo: A fotografia
[A crónica de hoje tem a ver com a desmontagem de uma exposição de fotografia que resultou do trabalho de Área-Escola da turma de Artes do 11º ano, num tempo em que ainda não havia telemóveis]
A exposição não tinha deixado ninguém indiferente. Sobrevivera à galhofa ingénua e ácida dos mais novos que aproveitaram a oportunidade para se banquetearem com um festim de piadas alarves e grosseiras. Resistira à língua viperina da Dona Rosa. Aguentou-se , com elegância, perante os comentários condescendentes de uns e a indiferença, mais ou menos disfarçada, de muitos outros.
Era possível reconhecer, no entanto, um outro olhar mais atento e solidário, quem sabe se enternecido, de alguém aprisionado na imagem do beijo fotografado junto do portão da escola. Por vezes viam-se, igualmente, grupos de jovens a discutir as fotos dos grafitis. Comparavam-nos, expressavam as suas referências ou tentavam localizá-los na geografia restrita do mundo que quotidianamente percorriam.
Na sala dos professores a exposição serviu de pretexto para conversas sobre a importância educativa daquele tipo de atividades. As manifestações de surpresa por um ou outro dos trabalhos expostos coexistiam também com a má-língua de sempre, sobretudo, do que fosse inédito, diferente e arrojado.
A presença dos pais foi uma surpresa para alguns dos alunos. Era a primeira vez que a visita dos progenitores à escola nada tinha a ver com queixas ou más notícias.
Para os alunos e para José António, o professor que dinamizara a iniciativa, a exposição tinha-os deixado bastante satisfeitos. Permitira-lhes ter voz e ser objeto privilegiado da atenção dos outros. O que tinham realizado marcara, se bem que de modo efémero, a vida na escola e isso fizera-os sentir-se bem.
Fora um projeto que começara com a discussão de algumas fotografias do álbum Terra, de Sebastião Salgado e que foi prosseguindo, entre acelerações e travagens. O que se sabe é que, numa manhã de Maio, a escola acordou com metade do polivalente ocupado. Fotografias a preto e branco, legendadas, que mostravam o que aqueles rapazes e aquelas raparigas foram capazes de ver e registar. Não eram obras-primas, mas sentia-se, pelo menos nalgumas delas, um pulsar que certamente animara a feitura de muitas obras-primas. Faltava-lhes em apuro técnico o que lhe sobrava em comunicabilidade e pressentia-se que, por detrás de cada cliché, existia algo que esse mesmo cliché aprisionava. Três fotos estavam um pouco desfocadas, mas a decisão de as expor foi o resultado de uma discussão séria e cuidada no seio do grupo. Uma, era de um arrumador de carros conhecido nas redondezas. Noutra, podia-se ler uma declaração de amor pirosa, pintada numa das paredes do ginásio. A terceira, mostrava a guarita vazia da portaria da escola.
Enquanto os alunos desmontavam cuidadosamente os painéis, José António observava o seu único contributo para a exposição. Uma foto de dois rapazes, sorridentes, com os braços sobre os ombros um do outro. Um momento de sorte, pensou. Lembra-se que esperava por alguém à porta da biblioteca, quando viu, no outro lado do átrio, os dois miúdos a sair de uma sala. Bem dispostos, expressavam através de gestos ágeis, e contidos, feitos de toques breves, fintas e fugas, um momento de cumplicidade que o cativou. Levou a mão ao bolso, e quase por instinto, puxou da sua pequena Canon, enquadrou-os, esperou pela luzinha verde e disparou. Já não se lembra qual foi a explicação que encontrou para justificar o seu gesto perante os alunos e a intenção que o animou. Mesmo agora, olhando novamente para aquela fotografia, sentia que estava perante um pretexto. Uma oportunidade para entrar no que sabia ser o outro lado do espelho de uma escola que, fazendo repousar em todos os que a percorrem o peso insustentável de um quotidiano tantas vezes sem sentido, nos permite que nos encontremos, ocasionalmente, uns com os outros. Um desses reeencontros que, afinal, nos ajuda a que nos possamos descubrir como pessoas.
[Texto adaptado da obra: Trindade, Rui; & Cosme, Ariana (2003). Isso vai sair no teste?. Porto: Edições ASA (Cadernos CRIAP, 36)]