[Este é um outro excerto de uma segunda crónica relacionada, ainda, com a greve dos estudantes do Ensino Básico e do Ensino Secundário referida no texto anterior]
Ao deixar a filha na escola, João Manuel reparou que, junto ao portão da entrada, alguém tinha atado uma faixa de pano proclamando que não havia condições. Quem a teria pintado e colocado ali? Um grupo de alunos mais afoito ou alguns professores descontentes?
Quer uns quer outros tinham razões de sobra para se queixar da escola. Os alunos, via-o pela filha que frequentava o 12 º ano, andava numa roda viva entre aulas, explicações, trabalhos individuais e de grupo, testes, relatórios e notas para manter. Os professores, via-o pela mulher, não lhes ficavam atrás. Eram as aulas extraordinárias, a matéria dada a correr face à extensão dos programas e a má fama que, indiscriminadamente, a opinião pública lhes atribuía.
Pensando bem, as condições de trabalho de uns e de outros estavam longe de ser invejáveis. E já não falava das condições de trabalho ou da ausência de recursos. Falava, antes, da impossibilidade de os professores ensinarem e dos alunos aprenderem naquele ambiente culturalmente absurdo. Apesar de não ter nenhuma razão de queixa das notas que a filha trimestralmente lhe apresentava, questionava-se sempre acerca do seu significado. Sabia que premiavam a capacidade de trabalho da miúda, o esforço que esta fazia e o preço das explicações que a Sara era obrigada a frequentar. Não sabia, no entanto, se valorizavam, tanto quanto ele gostaria, a sua inteligência, a sua sensibilidade e os seus muitos outros saberes e interesses.
Lembrava-se, no entanto, como os anos que a filha vivera no Jardim de Infância e na Escola Primária haviam sido diferentes. Quanto entusiasmo pressentira. Quantos bons hábitos intelectuais e sociais descobrira que uma educadora pode suscitar numa criança. Assistira a coisas inacreditáveis. Vira a pequena Sara a realizar experiências simples, a registá-las e a discuti-las. Tivera nas mãos um álbum com textos que as crianças tinham criado livremente e trabalhado depois, em grupo, sob a orientação da professora. Lera, pela primeira vez na vida «O cavaleiro da Dinamarca» que a filha trouxera para casa. Ficou embasbacado tanto com os problemas de geometria que a filha tinha de resolver como com o modo como o fizera. Assistira, igualmente, à divulgação de um projeto sobre os Direitos Humanos que mobilizara toda a classe ao longo do ano letivo. Aprendera, enfim, que poderia não haver qualquer tipo de incompatibilidade entre ritmos de aprendizagem, exigência académica e bem-estar dos alunos.
Hoje, com a Sara no Ensino Secundário, todas essas vivências se foram esfumando no tempo.. Aprender tornara-se o pretexto para alguma coisa que nada tinha a ver com aprendizagem. Os exames e as provas de avaliação tinham passado a definir todo o sentido das atividades que a Escola proporcionava, aprisionando alunos e professores a programas sem fim, enciclopédicos, precoce e pretensamente especializados que transformavam aqueles três anos num momento de sofrimento, provavelmente útil para alguns mas sem qualquer sentido para todos eles. E era, talvez por isso, que João Manuel continuava a pensar quem seriam os autores da faixa onde se denunciava que não havia condições.
Quando à noite confrontou a mulher perante a possibilidade de serem os professores os responsáveis pela mesma, recebeu em troca um sorriso cético e uma pergunta trocista:
- Pretendes convencer-me que o não há condições dos alunos pode ser equivalente ao não há condições dos professores?
A questão ficou no ar. Não lhe sabia responder. A filha, no quarto, encontrava-se a estudar arduamente para o teste de Português, tentando decifrar um texto de Jacinto Prado Coelho sobre os heterónimos de Pessoa, Nas prateleiras de um armário amontoavam-se os livros que as editoras publicavam com os enunciados dos exames dos anos anteriores e as respetivas soluções. Por cima, havia, ainda, uma prateleira com as provas-modelo relativas ao ano de 2001 que a Sara encontrara na Net. Entretanto, ali ao lado, a mulher preparava-se para planear a aula do dia seguinte, onde pretendia iniciar os alunos na primeira tópica de Freud.
Que sentido é que isto tem? Pensou mas não confrontou a mulher com a questão. Sabia que essa era uma questão algo inconveniente. Tão inconveniente com a faixa ingénua que nessa manhã ornamentava o portão da Escola.
[Texto adaptado da obra: Trindade, Rui; & Cosme, Ariana (2003). Isso vai sair no teste?. Porto: Edições ASA (Cadernos CRIAP 36) que corresponde a uma forma de homenagear Rui Canário porque foi ele que nos despertou, a mim e à Ariana, para esta cumplicidade matricial que se pode estabelecer entre professores e alunos, mesmo que uns e outros o não reconheçam]
Problema ainda sem solução.