Naquela semana, Aniceto ficara em casa. Tinha uma série de coisas para fazer e decidira meter férias. Estava a ler o jornal quando um olá inesperado interrompeu o silêncio da casa.
- Já conheces a Teresa?
Conhecia de vista.
- Não te incomoda que fiquemos aqui pela sala a estudar? A prova global de CTV é já amanhã e precisamos de nos preparar.
- Se eu não vos incomodar, estejam à vontade.
Baixou o volume do televisor e mergulhou novamente na leitura, ainda que não pudesse deixar de ouvir a conversa entre a filha e a colega.
- Tu já viste a quantidade de matéria que temos para estudar? Estamos lixadas.
Teresa, a colega da filha, pareceu-lhe ser a menos atarantada.
- Onde é que tu estás pior? Eu já estudei os calhaus, a hereditariedade e as hormonas. A maionese é das mais difíceis e o ADN, para mim, tem piada.
- Também gosto, mas vou-me ver à rasca na fotossíntese e ainda tenho de estudar a glicólise.
- Eu deixo-te os meus copianços...
- Mesmo assim preciso de olhar para essa porcaria.
Aniceto já tinha deixado de prestar atenção ao jornal. Aquilo parecia-lhe mais o planeamento de uma operação militar do que uma sessão de estudo. Percebeu que uma parte da matéria já tinha sido estudada, que havia ainda que fazer umas revisões e, como no seu tempo de estudante, os copianços continuavam a ser o que sempre foram, uma espécie de extintor cujo vidro deve ser partido em caso de emergência, mas de forma silenciosa e sem deixar rasto.
Então está combinado. Estudamos a fotossíntese de manhã, responde-se aos testes e logo se vê. A meiose fica para o fim da tarde, depois de termos estudado o ADN. À noite fazemos uns testes e... seja o que Deus quiser.
Ora, ali estava uma boa aluna em todo o seu esplendor. Organizada e eficaz.
O que estás a fazer? Não percas tempo com o esquema das fases da fotossíntese. Toma lá o meu. Eu explico-te.
Aniceto não queria acreditar. Quando elas chegaram à fosforilação do ADP sentia que não fazia parte daquele planeta. Levantou-se e saiu de casa para tomar um café. Quando voltou, as miúdas tentavam, em conjunto, responder às questões do livro de preparação para os exames.
Depois do almoço tinha de voltar a sair para ir ao Banco e tratar dos seguros. Retornou a casa quando a tarde já ia adiantada.
- Já lancharam?
- Ainda não.
- Então vamos lá parar e espairecer um bocadinho.
- Já vamos pai, deixa-nos acabar isto.
Foi sentar-se no sofá. Ligou a televisão e sintonizou o canal História. Do outro lado da sala, a filha e a colega tentavam resolver um problema. Qual é o genótipo do sujeito 4? Discutiam hipóteses e se estavam de acordo, avançavam. Caso contrário, procuravam a solução no livro.
- Ninguém tem fome? - atreveu-se a perguntar.
- Já vamos...
Sentia-se uma espécie de homem invisível.
- Avança-se?
- Mas eu não me sinto segura.
- Não temos tempo. Vamos responder às questões e quando tiveres dúvidas, eu ajudo-te.
Adeus lanche. Levantou-se e foi para a cozinha preparar-lhes umas sandes que colocou num tabuleiro com dois copos de sumo.
- Enquanto estudam, comam qualquer coisa.
Embora notasse um vago sinal de contrariedade, consegui ouvir um obrigado que não escondia a angústia das duas raparigas. Aniceto apercebia-se, como antes nunca se dera conta, o que era a vida de um estudante do Ensino Secundário. O que tinha mudado desde que ele concluíra o Curso Geral dos Liceus há mais de trinta atrás?
Os programas eram, certamente, diferentes. Os livros eram mais coloridos, possuíam mais esquemas e eram graficamente melhor produzidos. Os jovens vestiam-se e relacionavam-se de forma mais aberta e irreverente. Os professores, tal como em geral os adultos, talvez fossem menos distantes e autoritários, o que não impedia, contudo, que sessões de estudo como aquela que, hoje, assistira pudessem existir. Qual a utilidade do conhecimento assim adquirido? A mesma questão que tantas vezes colocara a si próprio quer como aluno do Liceu quer, mais tarde, como estudante universitário.
[Texto adaptado da obra: Trindade, Rui; & Cosme, Ariana (2003). Isso vai sair no teste?. Porto: Edições ASA (Cadernos CRIAP 36)]
Tempo parado.