A dimensão heurística da Biologia como finalidade educativa
No texto anterior defendi a necessidade de, no âmbito de um tipo de gestão curricular subordinada ao conceito de conhecimento poderoso (Young, 2010), se considerar de forma articulada com a dimensão concetual da disciplina de Biologia a dimensão heurística, dado que, como defendem Yates e Millar (2016), as áreas de saber são, mais do que um corpo do conhecimentos, formas de conhecer.
Sendo necessário, como o fez Dempster (2023) para definir o essencial, que os professores estejam conscientes das vicissitudes epistemológicas que sustentam os conceitos das diferentes áreas de saber, as quais lhes permitam assumir as suas decisões curriculares, é necessário, igualmente, que os professores compreendam como esses conceitos foram construídos e a natureza das opções heurísticas que permitiram uma tal construção. O problema na abordagem de Dempster é que esta última dimensão, a dimensão heurística, parece ter sido ignorada, penalizando-se, assim, as possibilidades de refletir sobre os referenciais que, neste caso, na área de Biologia, deverão ser tidos em conta do ponto de vista quer da própria definição das finalidades educativas quer da organização e gestão do trabalho pedagógico.
Trata-se de uma problemática que tem de ser valorizada e que só o poderá ser se tivermos em conta as vicissitudes inerentes ao processo de construção histórica da Biologia como área do saber. Foi no século XIX que a Biologia emergiu e se afirmou como uma ciência, sob a influência da Física e, em particular, da opção epistemológica pelo mecanicismo newtoniano. Não foi por acaso que Descartes afirmou, no seu «Discurso do Método», que o organismo poderia ser visto como uma máquina, o que permitiria, então, que a matéria animada ou inanimada pudesse ser objeto de leituras mecânicas e deterministas (Mayr, 2004). Será, posteriormente, na década de 50, que segundo Mayr (idem), esta metanarrativa começa a ser problematizada, reconhecendo-se que os sistemas vivos não são comparáveis com os objetos inanimados que constituem o objeto de atenção da Física e da Química; que o acaso não é um problema mas uma condição a estudar ou que a Biologia se carateriza por uma grande amplitude disciplinar quando, para além dos vínculos já estabelecidos com outras áreas do saber no campo das ciências ditas exatas, se reconhece, por exemplo, a existência de campos interdisciplinares com a História e a Antropologia. De uma Ciência sujeita ao paradigma cartesiano, a Biologia afirma-se, agora, como uma Ciência singular, cuja relação com os seus objetos de estudo deixa de se produzir em torno de uma perspetiva heurística analítica para se valorizar, antes, uma perspetiva sistémica na abordagem desses mesmos objetos (Bertalanfy, 1973). Posteriormente, com Maturana e Varela (1993), adquire centralidade a noção de que os seres vivos são unidades autopoiéticas, o que significa que a sua dinâmica de preservação se encontra dependente da possibilidade das mudanças, nestes sistemas, serem “determinadas pela sua própria estrutura” (p. 82).
Até que ponto é que este novo tipo de desafios heurísticos afeta o modo como se ensina Biologia e condiciona as vivências que os alunos experienciam nos espaços de formação relacionados com esta disciplina?
Tendo como referência a tipologia que Cachapuz, Praia e Jorge (2002) propõem para caraterizar os modelos de ensino na área das Ciências Naturais, verifica-se que há uma incongruência gritante, em termos concetuais e metodológicos entre o modelo de ensino por transmissão e os desafios heurísticos atrás mencionados. Neste modelo de ensino penalizam-se as atividades de investigação dos alunos, burocratiza-se o trabalho docente e privilegia-se “a extensão e não a profundidade nas abordagens programáticas” (p. 41). O trabalho experimental é, por um lado, circunscrito a um trabalho “ilustrativo, demonstrativo e de sentido verificatório ou quando muito confirmatório.” (p. 146) e, por outro, “o protocolo experimental, ao ter a as instruções todas muito detalhadas, não dá ao espaço ao aluno para, ao menos, perguntar para quem está a fazer o que lhe foi dito para fazer” (idem).
Para os mesmos autores, uma das alternativas ao modelo de ensino por transmissão, o modelo de ensino pela descoberta (ED) que “privilegia o ensino dos designados processos da ciência como reação à ortodoxia de ensino de caráter expositivo e muito centrado nos factos científicos” (idem, p. 147) também nos confronta com um problema: o de através da afirmação da “metáfora do aluno cientista” (p. 147), se promover a crença de que, através da observação e discussão dos fenómenos, não só se aprende a utilizar o método científico, como se circunscreve a produção de ciência à utilização deste método. Para Cachapuz, Praia e Jorge (idem), epistemologicamente este modelo alicerça-se na crença de que os cientistas para acederem à verdade caminham de “forma mecânica, invariável e linear dos factos para as ideias” (p. 148). Neste caso, apesar de tudo, pode-se falar de congruência entre a abordagem mecanicista da Biologia, correspondente à sua emergência como área de saber no século XIX, e o modelo de ensino pela descoberta. O problema é que a Biologia, hoje, define-se em função de outros compromissos epistemológicos que são contraditórios com os pressupostos de um tal modelo.
Um terceiro modelo identificado por Cachapuz, Praia e Jorge (idem), designado por modelo de ensino para a mudança concetual (EMC), ainda que se afaste, inequivocamente, do “sentido verificatório ou meramente confirmatório do trabalho experimental” (idem, p. 162), bem como do empirismo grosseiro do Modelo de ED continua a atribuir uma centralidade inequívoca à dimensão heurística das propostas e das vivências a oferecer aos alunos, em comparação com o papel que se atribui aos quadros concetuais como referências incontornáveis do trabalho formativo que tem lugar na área das Ciências Naturais. Para os autores em causa, estamos perante um modelo de ensino com imensas potencialidades, dado que contraria a possibilidade quer dos alunos se assumirem como seres culturalmente autossuficientes quer dos professores se definirem como facilitadores. Trata-se de um modelo de ensino que introduz preocupações curriculares e pedagógicas muito interessantes ao nível da reflexão sobre o ensino da disciplina em questão, nomeadamente aquelas que se relacionam com o papel dos mapas concetuais, a utilização da História das Ciências como um referencial da ação educativa e a conceção de trabalho experimental que mobiliza: um tipo de trabalho que visa gerar a discussão e a controvérsia, de forma a que os professores confrontem os alunos com as hipóteses que propõem para responder aos problemas, permitindo aos segundos tomarem consciência das suas representações sobre o assunto em debate.
O quarto modelo a que os autores se referem designa-se por modelo de ensino por pesquisa, defendendo que neste modelo não se pretende encontrar, apenas, um meio epistemologicamente adequado para “confrontar, questionar ou refutar as ideias erróneas dos alunos, como tipicamente é o caso do EMC e, muito menos, de usar o TE meramente no sentido confirmatório caraterístico do EPT. Do que se trata agora é de desenvolver atividades mais abertas, valorizando contextos não estritamente académicos, que surgem mais por necessidade de encontrar soluções para os problemas anteriormente definidos e com que os alunos se debatem. Assim, tais atividades tornam-se geradoras de situações em que os dados obtidos por via experimental são o fermento para a discussão, conjuntamente com elementos vindos de outras fontes. Os dados já não são óbvios e os resultados já não falam por si. Faz-se notar, mais uma vez, que os resultados não são encontrados e adquiridos apriori, já que “têm de ser lidos através dos quadros teóricos conhecidos, bem como de outras vivências , nomeadamente com cruzamentos vindos da experiência do quotidiano” (p. 179).
Mais do que propor o que quer que seja numa área de saber com a qual mantenho uma relação de leigo interessado, o que me interessa com este texto é mostrar como a centralidade que atribuo à relação entre os alunos e o conhecimento culturalmente validado, em qualquer disciplina, obriga os professores, no âmbito das decisões que têm de assumir, a mostrarem-se capazes de refletir epistemologicamente sobre os desafios concetuais e heurísticos com os quais confrontam os seus alunos no âmbito das disciplinas que lecionam, agindo em conformidade com uma tal reflexão, de forma a não atraiçoar as formas de conhecer que, hoje, caraterizam essas disciplinas.
Referências bibliográficas
Bertalanffy, L. von (1973). Théorie générale des systèmes. Paris: Dunod.
Cachapuz, António; Praia, João; Jorge, Manuela (2002). Ciência, Educação em Ciência e Ensino das Ciências. Lisboa: Lisboa: IIE/ME.
Maturana, H.; Varela, F. (1996). El arbol del conocimiento: Las bases biológicas del conocimiento humano. Madrid: Editorial Debate, S. A.
Dempster, Edith R. (2023). What is ‘powerful knowledge’ in school biology? Journal of Biological Education, 57:2, 245-247.
Mayr, E. (2004). Biologia, ciência única: Reflexões sobre a autonomia de uma disciplina científica. S. Paulo: Companhia das Letras.
Yates, L.; Millar, V. (2016). ‘Powerful knowledge’ curriculum theories and the case of physics. The Curriculum Journal, Vol. 27, N. 3, 298-312,
Young, M. (2010). Conhecimento e Currículo: do socioconstrutivismo ao realismo social na sociologia da educação. Porto: Porto Editora.