A disciplina de Biologia: Que desafios curriculares?
Numa reflexão sobre a Biologia como disciplina escolar, Edith Dempster (2013), propõe, a partir das orientações do que designa “Bildung-centred Didaktik” (p. 245) que a disciplina em questão permite “expandir, através do conceito de conhecimento poderoso, o conceito de ‘conhecimento como um fim em si mesmo’ para o de ‘conhecimento como instrumento de empoderamento humano’” (ibidem). Trata-se de um projeto que enfatiza a necessidade da educação se centrar na formação integral dos indivíduos, a partir das experiências educativas específicas que se podem viver em cada uma das disciplinas escolares, em vez de se circunscrever a preocupação com essa formação, apenas, ao desempenho escolar dos alunos ou ao desenvolvimento estrito das suas capacidades.
Este é um projeto que coloca os professores perante um exigentíssimo trabalho de gestão curricular que obriga a que se proceda a uma redução sofisticada da complexidade dos desafios pessoais e culturais com que os alunos são confrontados, neste caso na área de Biologia. Um trabalho que se alicerça em duas sub-operações: a definição do essencial e a procura do fundamental (idem) que só é passível de ser concretizado a partir de um processo de reflexão epistemológica contextualizada porque diz respeito, apenas, a cada disciplina e tem em conta, por isso, a especificidade dos seus objetos de estudo, bem como os seus modos particulares de abordar e de agir sobre a realidade
Neste texto, é um tal exercício que proponho em função da reflexão, atrás referida, de Dempster (idem). De acordo com a autora, a definição do essencial em Biologia alicerça-se nas seguintes componentes estruturantes: biologia celular, hereditariedade, evolução, diversidade, ecologia, estrutura animal e funções, estrutura vegetal e funções (Starr, Evers & Starr, 2016)” (p. 245), em função das quais Dempster, inspirada em Harlen e colaboradores, estrutura quatro núcleos curriculares: (i) os organismos vivos são compostos por células e que têm uma vida útil finita; (ii) os organismos vivos dependem e competem com outros organismos por energia e recursos; (iii) a informação genética é transmitida de uma geração para a outra e (iv) a evolução é responsável pela diversidade dos organismo, vivos ou extintos” (ibidem).
É em função destes núcleos que se desenvolve o trabalho educativo com os alunos entre os 5 e os 17 anos (idem), o qual se pode concretizar, no entanto, de formas diversas, como Dempster sugere recorrendo a uma outra abordagem: a que Campbell coordenou, que, partindo dos núcleos de Harlen, propõe que o trabalho com os estudantes seja realizado a partir de um tema agregador, o de que “a evolução contribui para a unidade e diversidade da vida” (idem, p. 246). Este, por sua vez, subdivide-se em quatro-subtemas: (i) novas propriedades que emergem nos níveis sucessivos da organização biológica; (ii) os processos vitais que envolvem a manifestação e transmissão da informação genética; (iii) a vida que requer transferência e transformação de energia e de matéria e (iv) as interações entre os ecossistemas e as moléculas que são importantes para os sistemas biológicos (idem). Em cada um destes sub-temas, identificam-se, finalmente, os conteúdos que servem de referência ao processo de definição das aprendizagens essenciais a realizar na disciplina de Biologia.
Para Dempster este é um exemplo que permite identificar o que é o conhecimento poderoso (Young, 2010) em Biologia. Trata-se, na verdade, de um exemplo que permite ilustrar como o conhecimento culturalmente validado, na área em questão, constitui um recurso para se compreender, em primeiro lugar, como a reflexão epistemológica permite suportar a reflexão curricular e pedagógica, conferindo-lhe sentido e permitindo que esta gere a possibilidade dos alunos realizarem aprendizagens culturalmente significativas e, concomitantemente, desenvolverem capacidades e atitudes.
Pese a importância da reflexão proposta por Dempster, não posso deixar de referir que a mesma assenta num equívoco: o de circunscrever o conhecimento poderoso ao dos conteúdos das áreas disciplinares, neste caso a de Biologia, parecendo ignorar que estas áreas correspondem a formas de conhecimento e não apenas a corpos de saberes (Yates & Millar, 2016). Trata-se de uma questão decisiva porque o modelo de Dempster se focaliza, somente, na dimensão concetual da disciplina de Biologia, parecendo esquecer que a sua dimensão heurística constitui, igualmente, uma referência e um objeto de formação.
Será no próximo texto que irei abordar estas últimas dimensões, o que permite evidenciar, mais uma vez, a importância da reflexão epistemológica e como esta se articula com o processo de construção histórica, neste caso, da disciplina de Biologia. É esta reflexão que irá permitir, igualmente, propor uma abordagem sobre a organização do trabalho de ensino e aprendizagem que deixe de abordar os métodos e as estratégias de ensino de forma epistemológica e concetualmente descontextualizada.
Referências bibliográficas
Dempster, Edith R. (2023). What is ‘powerful knowledge’ in school biology? Journal of Biological Education, 57:2, 245-247.
Yates, L.; Millar, V. (2016). ‘Powerful knowledge’ curriculum theories and the case of physics. The Curriculum Journal, Vol. 27, N. 3, 298-312,
Young, M. Conhecimento e Currículo: do socioconstrutivismo ao realismo social na sociologia da educação. Porto: Porto Editora, 2010