A reflexão epistemológica como condição de reflexões curriculares e pedagógicas produtivas e consequentes
Inicio, agora, uma série de textos cuja principal finalidade é a de valorizar e conferir visibilidade ao conhecimento culturalmente validado como fator decisivo para o desenvolvimento de projetos de educação escolar, tendo em conta, como defende Biesta (2012), que a educação escolar se define em função de três propósitos: o de socializar, o de singularizar e o de qualificar. Através do primeiro, o que se pretende é que cada estudante se possa tornar membro de uma comunidade, onde se partilham projetos, saberes e valores que são decisivos para se poderem afirmar e construir como pessoas. A singularização é, por sua vez, o propósito através do qual se afirma a necessidade das escolas contribuírem para que cada um se possa assumir como o autor da sua vida, enquanto a qualificação diz respeito à necessidade de capacitar as pessoas para realizarem determinados tipos de tarefas e de funções (idem).
Como defende o mesmo autor, o processo educativo que favorece a qualificação, a socialização e a singularização é um “processo através do qual entramos no mundo... e o mundo entra em nós” (idem, p. 43), o que, no caso da Escola, se trata de um pressuposto que nos obriga a considerar que o principal investimento desta instituição consiste em estimular, desafiar e apoiar os estudantes a deslocarem-se dos seus universos pessoais para universos desconhecidos, os quais os obrigam a confrontarem-se tanto com outras ideias e conceitos, como com outras formas de estar, de pensar e de agir que são tidas como fundamentais para responderem aos diversos tipos de desafios com que se confrontam na vida das sociedades contemporâneas.
É de acordo com um tal propósito que a questão do conhecimento culturalmente validado assume um papel incontornável como fator educativo. Deixa de ficar confinado ao de instrumento de disciplinarização atitudinal circunscrita (Trindade & Cosme, 2024), como propõem as correntes instrucionistas, ou ao de fator subordinado ao desenvolvimento das capacidades cognitivas e socioemocionais dos alunos, como sugerem as abordagens alunocêntricas. Para estas, o desenvolvimento de tais capacidades é condição suficiente para que a relação com aquele tipo de conhecimento dependa, sobretudo, do acesso à mesma, como se a transição entre o conhecimento experiencial e o conhecimento culturalmente validado fosse uma transição inevitável. Se, para o paradigma da instrução, o primeiro tipo de conhecimento é desprezado, para as abordagens alunocêntricas o conhecimento experiencial é visto como um conhecimento equivalente ao conhecimento culturalmente validado.
Perante este equívoco, importa começar por reconhecer que estamos perante conhecimentos distintos, quanto à sua natureza, função e aos pressupostos metodológicos que os sustentam. Na Escola, é a tensão entre ambos que é necessário valorizar, desde que se saiba que a existência desta instituição educativa só se justifica pela importância que no mundo contemporâneo assume a necessidade de apropriação do conhecimento culturalmente validado e de se entender que um tal processo de apropriação tem de constituir uma oportunidade de empoderamento pessoal e social dos seus alunos. Um tal pressuposto não significa que se menorize o conhecimento experiencial, significa, apenas, que é necessário que os docentes o tenham em conta como produto da atividade e da inteligência humanas, mesmo que isso os obrigue a reconhecer e a defrontar-se com os equívocos, os erros, as superstições, os preconceitos, os estereótipos, as mentiras ou as meias-verdades com que os seus alunos os confrontam.
Só um tal exercício, tão exigente e falível, é que permite que os professores possam contribuir para que a relação dos estudantes com o conhecimento culturalmente validado se afirme como uma relação culturalmente significativa. Neste caso não basta o domínio, por parte dos docentes, dos conceitos e dos procedimentos que este pretende que os alunos aprendam. Um tal domínio poderá garantir, apenas, que o professor sabe responder às questões e resolver os exercícios com os quais confronta os alunos. Sendo isto necessário, não é, contudo, suficiente, dado que uma tal relação com o conhecimento nem sempre lhe permite compreender as dificuldades dos alunos ou encontrar outros exemplos e adotar novas estratégias mais consequentes e úteis para estimular as aprendizagens dos estudantes. Daí que um professor, ao nível das reflexões curriculares e pedagógicas que produz para tomar decisões, tenha de ser capaz de refletir epistemologicamente sobre os desafios culturais que propõe aos seus alunos. É que é a reflexão epistemológica que permite identificar os problemas, as exigências e as preocupações das diferentes disciplinas ou áreas de saber, em funções dos quais se define a pertinência dos desafios curriculares que orientam o trabalho educativo nos diversos ciclos de escolaridade, no momento em que permite identificar as tensões epistemológicas e concetuais que se viveram e vivem no seio das diferentes áreas de saber, as dificuldades, as soluções, os consensos e os conceitos integradores que as caraterizam. É a reflexão epistemológica, também, que permite identificar, ainda, as racionalidades e os procedimentos heurísticos que permitiram ir construindo as respostas face àqueles problemas, desafios e preocupações, os quais lhes permitam responder às seguintes questões: (i) Como é que nas áreas de saber X ou Y se raciocina, se infere ou se generaliza? (ii) Que instrumentos se utilizam para lermos, interpretarmos e interpelarmos a realidade que se estuda? (iii) Como se age?
Nos próximos textos, será este o objeto dos mesmos, sabendo que estamos perante uma reflexão cujo padrão não pode continuar a ser um padrão generalista. O que proponho nesses textos é, sobretudo, uma reflexão epistemologicamente mais ampla em domínios como os das Artes, Biologia, Desenvolvimento Sustentável, Física, Geografia, História, Leitura, Literatura, Matemática, Química ou Sociologia.
Trata-se do único exercício que alguém como eu pode fazer, dado que um trabalho mais aprofundado só poderá ser concretizado por quem seja um especialista em cada uma daquelas áreas. Daí que os próximos textos correspondam, também, a um apelo para que no campo dos Estudos Curriculares a reflexão epistemológica possa assumir uma maior centralidade e pertinência.
Referências bibliográficas
Biesta, Gerd (2012). Giving teaching back to education: Responding to the disappearance of the teacher. Phenomenology and Practice, 6 (2), 35-49.
Trindade, Rui; Cosme, Ariana (2024). Escola e Conhecimento: O vínculo indissociável. Porto: Porto Editora.