É o desenvolvimento das capacidades socioemocionais que permite garantir a possibilidade dos alunos realizarem aprendizagens mais significativas, consistentes e profundas?
Partilho esta questão porque já me confrontei com afirmações de pessoas, incluindo professores, que fazem depender a transformação da Escola, num espaço mais humano e significativo, do investimento no desenvolvimento das capacidades socioemocionais dos seus alunos, como se este fosse um objetivo em si mesmo. Independentemente do número de profissionais que aceitam um tal pressuposto, é necessário discuti-lo de forma séria, sem subterfúgios e frases incolores, para que o campo da educação não se transforme num campo isento de reflexões ética e tecnicamente sustentadas, marcado pela força dos soundbites e dos modismos a estes associados.
O súbito interesse pelas competências socioemocionais como objetivo educativo é, em larga medida, da responsabilidade da OCDE e, particularmente do CERI, ainda que, na verdade, as razões que o justificam tenham as suas raízes no Movimento da Escola Nova (MEN) que, nas primeiras décadas do século XX, defendia a necessidade de se promoverem projetos de educação mais amplos do que aqueles que o instrucionismo curricular e pedagógico defendia e acalentava. Para este movimento era necessário que a Escola se preocupasse, sobretudo, com a formação pessoal e social dos alunos, nomeadamente, com o desenvovimento das suas capacidades de cooperar, de participar, de se autonomizar ou, entre coisas, de aprender a aprender.
A afirmação de tais propósitos educativos acabaram por encontrar respaldo nas preocupações que o campo do cognitivismo, no domínio da Psicologia, veio introduzir nos debates e reflexões sobre o ato de educar, reforçando-se uma tendência: a da subvalorização do conhecimento culturalmente validado e das suas especificidades concetuais e heurísticas como um fator decisivo para explicar os diferentes modos como aquele ato pode ser dinamizado. O problema não está tanto em chamar a atenção para a necessidade de, em qualquer disciplina, se promover a capacidade de interpretação, análise, síntese e interpelação dos alunos ou de desenvolver a sua capacidade de cooperar, de ser persistente, de assumir uma postura crítica e mais criativa ou de tomar consciência das suas potencialidades e vulnerabilidades. O problema consiste em alimentar o equívoco através do qual se tende a dissociar o desenvolvimento da inteligência e da humanidade dos alunos do conhecimento que estes possuem para realizar aquelas operações intelectuais e socioemocionais. Mais grave, ainda, é defender, de forma mais ou menos explícita, que há uma espécie de incompatibilidade entre o desenvolvimento das capacidades que permitem tais operações e a apropriação daquele tipo de conhecimento, como se este fosse um obstáculo que impedisse o desenvolvimento dessas capacidades..
Quem nunca ouviu afirmar que não vale a pena valorizar o conhecimento que, hoje, temos ao nosso dispor porque ele depressa estará desatualizado ou que não teremos de nos preocupar muito com o mesmo porque está tudo disponível na internet? A aceitar isto, faz todo o sentido defender a proposta de que é o desenvolvimento das capacidades socioemocionais que garante a possibilidade dos alunos realizarem aprendizagens mais significativas, consistentes e profundas, ainda que considere que uma tal abordagem é, no mínimo, uma abordagem simplista, ingénua e voluntarista.
Na verdade, estamos perante uma abordagem epistemologicamente incompetente porque despreza o facto de que a possibilidade de alguém procurar informação pertinente, de a avaliar quanto à sua pertinência e credibilidade, de ser resiliente perante as dificuldades ou de aprender a cooperar com os outros, no âmbito de um tal processo, não pode deixar de ser afetado pela relação de familiaridade que se mantém com aquela informação e com os procedimentos que caraterizam o modo como, na área de saber a que a informação diz respeito, se raciocina, se comunica e se discute. Ou seja, a possibilidade de desenvolvimento das capacidades socioemocionais, como objetivo educativo exequível, está dependente da qualidade e natureza dos desafios culturais que, nas escolas, os professores proporcionam aos alunos para os capacitar a pensar sobre o conhecimento culturalmente validado e a mobilizá-lo para se relacionarem e agir de forma esclarecida e eticamente consequente. Assim, as capacidades socioemocionais não podem ser entendidas como uma variável subordinante, mas, antes, como uma variável subordinada da relação que aos estudantes é permitido estabelecer com o conhecimento culturalmente validado.
É isso e a velha querela conhecimento vs competência! Naturalmente que o fito fundamental da escola é fazer passar o tesouro cultural às gerações seguintes, tesouro esse que engloba conhecimento, sabedoria, competências e capacidades socioemocionais...
Bem oportuno e pertinente. No meio de tanto comércio da banha da cobra importa procurar ver claro. Obrigado.