Este é um excerto de um conto, da autoria de Mia Couto, intitulado «Lição de caligrafia» e que pode ser lido na obra «Compêndio para desenterrar nuvens». Num tempo em que a reflexão sobre a escrita e a leitura tendem a ser circunscritas ao desenvolvimento da consciência fonológica e à procura do método mais eficaz, porventura infalível, vale a pena afirmar e compreender como a escrita e a leitura terão de ser mais do que isso: ferramentas através das quais cada um se pode construir e aperfeiçoar como um ser humano mais capaz.
“Começo por confessar um segredo: a escrita é um rio. As vogais são água. As consoantes são pedras. A escrita é um rio antigo que se inunda de gente. E o alfabeto é um barco. A maioria das pessoas nunca viajou nesse barco.
Repara, filha: O espaço entre as palavras é um suspiro. E o paráfrago é um degrau. A escrita é uma escada de pernas para o ar: descemos quando queremos voar, subimos para nos tornarmos pequenos. Agora já podes ver como as linhas dos cadernos são fios onde estendes panos a secar. Cada palavra é uma peça de roupa às avessas: ao vestir-nos o corpo, despe-nos a alma.
Outra confindência: a caligrafia é uma lição de humildade. Não pode haver vaidade no alfabeto. A letra que, nesta frase, é maiúscula, na frase seguinte já desceu do pedestal. Somos como as letras: o tamanho que temos depende dos outros que, junto connosco, costuram as palavras.
Mais um conselho: não é com a perfeição do desenho que te deves ocupar. Esse desenho será sempre imperfeito se não despertar a gente que mora dentro de ti. Se não escutares essas vozes é melhor rasgares a folha. Não se escreve nada se não estiver ninguém dentro do papel.” (Couto, 2023, p. 98-99).
Fonte
Couto, Mia (2023). Compêndio para desenterrar nuvens. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.
Que alegria ler as palavras de Mia Couto! Pensar a leitura e a escrita no seu âmbito social é ainda mais urgente em tempos que métodos prontos com fonemas isolados se fazem presentes. Lemos e escrevemos para a vida, não (apenas) para a escola. Obrigada pela partilha do texto, Professor Rui!
Mas olha que este texto caiu na perfeição! Valentina está na sua fase de paixão pela escrita. Ontem, ao escrever o nome do pai e colocar qualquer letra fora do sítio, dei uma sugestão de remendo.
Ela, a partir do seu perfeccionismo (que se calhar puxou a quem?!), não aceitou o remendo. "Letras grossas são da pré!" Oh, minha filha, mas quem te disse isso?
A nossa letra é de certo modo a expressão da nossa identidade. Além do facto de nos diferenciarmos um do outro pelo tipo de "letra", nós teremos várias "letras" ao longo da vida. Exploramos várias: grossas, finas, retilíneas, curvas, ...
Hoje, nem de propósito, recebi esse texto que, quando Valentina chegar da escola, será a nossa reflexão do dia. Aliás, o Blog tem sido sempre uma inspiração, como já era possível prever.
Saindo da parte mãe e indo para a parte profissional e académica: Ao meu ver o texto nos inspira a pensar a escrita como ferramenta de empoderamento com uma dimensão social e não como um processo instrumentalizado circunscrito a uma forma - única e perfeita. Pensando em Freire: A leitura do mundo antecede a leitura da palavra. E então não podemos pensar na importância de se escrever o mundo?! Que a leitura deste texto inspire práticas outras. Obrigada!!!