O livro «Aprender»: De que se fala quando se fala do currículo estruturado? (II)
Para Nuno Crato (NC) é vantajoso, do ponto de vista curricular, que se respeite, em cada disciplina, uma estrutura porque, na sua perspetiva, “progredir no currículo é semelhante a progredir numa narrativa” (Crato, 2024, p. 105), dado que “a evolução ao longo do currículo é semelhante à evolução numa história que se narra, cuja sequência é necessária para a sua compreensão” (ibidem).
Independentemente da desconfiança que tenho vindo a manifestar face aos potenciais equívocos das analogias, reconheço que, neste caso, esta tem o mérito de revelar que quando N. Crato enaltece a importância de um currículo e de um ensino estruturados se refere a uma sequência de conteúdos organizada de forma invariante que visa prescrever e pré-determinar o trabalho de professores e alunos nos mais diferentes contextos letivos.
Perante esta abordagem convém começar por afirmar que nada me move, muito pelo contrário, para a necessidade dos professores assumirem intenções educativas claras, enquanto condição de uma ação docente esclarecida e consequente. Para isso, importa que cada professor seja capaz de responder a três questões decisivas: (i) o que é que eu pretendo que os meus alunos realizem e aprendam? (ii) o que vou fazer, nas condições de que disponho, para que os meus realizem e aprendam aquilo que eu pretendo que eles realizem e aprendem? Como é que vou avaliar se eu e eles fomos bem sucedidos?
Para responder a estas questões não há, contudo, algoritmos prévios ou universais, como sugere N. Crato, que possam dispensar os professores de refletir e tomar decisões curriculares e pedagógicas. Um propósito que está dependente do conhecimento que um professor possui sobre as particularidades epistemológicas, concetuais e heurísticas da sua área de saber, o que lhe permite, por um lado, definir os desafios e as exigências com os quais vai confrontar os alunos e, por outro, usufruir de um referente que os apoie a identificar as singularidades das conceções e dos desempenhos manifestados por estes. Só assim, é que esse mesmo professor será capaz de propor objetivos sustentados, exequíveis e consequentes, tomar decisões pedagógicas adequadas e produzir análises produtivas que lhe revelem as potencialidades e as dificuldades dos alunos, de carne e osso, que tem pela frente.
Neste âmbito, admito que algumas vezes possa recorrer ao tipo de sequências estruturadas que Crato tanto valoriza, enquanto noutras situações isso não faz qualquer sentido. Aceitar que um professor só pode ser bom professor se o seu trabalho for determinado pelas Metas Curriculares que, enquanto ministro, N.C. promulgou, corresponde a uma atitude em que se reconhece que os docentes portugueses não são capazes de refletir, analisar as condições e os constrangimentos a que estão sujeitos e tomar decisões curriculares e pedagógicas consequentes. A ser assim, a possibilidade de diversificar desafios e diferenciar estratégias está posta em causa e, neste sentido, está em causa a possibilidade da Escola se constituir como um espaço culturalmente significativo, empoderador e mais inclusivo. Está em causa, em última análise, a possibilidade de ambicionarmos que os nossos alunos atinjam níveis de desempenho mais elevados nas provas internacionais.
Poderão perguntar-me se os professores portugueses podem realizar o tipo de ação docente que eu acabei de propor e eu direi que conheço alguns que o fazem, outros que não o fazem mas têm condições de o poder vir a fazer se forem estimulados e apoiados a fazê-lo e outros que nunca o farão. Saber isto, não significa, no entanto, que nos resignemos a equiparar o trabalho de um docente ao de um funcionário cujo trabalho é prescrito por processos de algoritmização curricular e pedagógica, assentes em sequências de conteúdos organizadas de forma invariante e supostamente de aplicação universal.
Tenho para mim que o que proponho é um desafio que não é fácil assumir e que exige que seja visto como um desafio que não se circunscreve, apenas, ao trabalho dos professores. É necessário que cada escola crie as condições para que os seus professores se envolvam em projetos de reflexão, de cooperação e de intervenção consequentes. É também um desafio que implica que a formação inicial seja o que ainda não é e que a formação contínua possa ser algo que, podendo acontecer, ainda não acontece. Apesar de saber que proponho um projeto a roçar o utópico, também sei que é inevitável fazê-lo porque é insustentável continuar a insistir em soluções fáceis, como é caso daquelas que N. Crato prescreve no momento em que, por exemplo, afirma que quando “o currículo seguido é bem estruturado, os alunos conseguem passar à fase seguinte, a dos desafios e descobertas” (idem, p. 106).
Foi no texto intitulado «Meter os Aliados na Pena Ventosa: Instruir como necessidade educativa prévia», o qual foi publicado neste blogue em 21/12/2024, que refleti sobre a relação a que Nuno Crato estabelece entre aulas expositivas e trabalho de descoberta. Hoje, não tenho mais nada a acrescentar ao que escrevi nesse texto e até reforço que se trata de uma problemática que nem podemos ignorar nem tão pouco simplificar, como NC o faz. Daí que recomende que quem estiver disposto a isso, leia ou volte a ler aquele texto.
Referências
Crato, Nuno (2024). Aprender. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Trindade, Rui (2024). Meter os Aliados na Pena Ventosa: Instruir como necessidade educativa prévia. https://encruzilhadas.pt/publish/posts/detail/153455908?referrer=%2Fpublish%2Fposts