Numa reação ao texto inicial com que inicio este blog, o José Matias Alves, uma pessoa que dispensa apresentações, dada a sua presença e voz assíduas em iniciativas e textos que, na minha perspetiva, são contributos decisivos para se refletir sobre a transformação da Escola portuguesa contemporânea, confronta-me com uma questão que, de facto, não pode ser ignorada.
“O ‘paradigma pedagógica da aprendizagem’ não pode ser o que a UNESCO, já em 1996, no célebre relatório - Educação um tesouro a descobrir, designava como os quatro pilares da educação - o aprender a conhecer, o aprender a fazer, o aprender a ser, o aprender a conviver (podendo ainda acrescentar o aprender a crescer juntos)?”
A questão em apreço decorre do facto de eu ter assumido que “o apaziguamento da minha relação com a profissão só se tornou possível com a rutura que estabeleci com o que, hoje, designo por paradigma pedagógico da aprendizagem”. Uma afirmação que reitero, ainda que seja necessário esclarecer que o meu distanciamento face àquele paradigma não significa nem que recuse que é a aprendizagem dos alunos que deve constituir o centro das preocupações da Escola e dos seus professores, nem que desvalorize os quatro pilares da educação propostos no relatório da UNESCO, a que Matias Alves se refere como pilares estruturantes da ação educativa que tem lugar nas escolas.
Para explicar melhor um tal distanciamento, importa começar por referir que o recurso à formulação dos três paradigmas (o da instrução, o da aprendizagem e o da comunicação), que eu e a Ariana produzimos para, sobretudo, conferir visibilidade aos pressupostos epistemológicos e concetuais que sustentam os projetos de intervenção que se desenvolvem em contextos escolares, tem mais a ver com a reflexão sobre os compromissos profissionais dos docentes do que propriamente com a natureza dos desafios que os discentes deverão enfrentar. Sem pretender dissociar tais compromissos de tais desafios, o que pretendo é afirmar quer que que estes estão dependentes daqueles quer que a reflexão sobre os desafios a propor aos docentes é uma reflexão subordinada ao modo como os professores concebem e concretizam a sua intervenção profissional.
Fazendo a história do empreendimento intelectual em função do qual definimos a existência de três paradigmas, pode considerar-se que a pré-história do mesmo pode ser encontrada na minha tese de doutoramento, nomeadamente com a interpelação crítica que produzi relativamente à reflexão e propostas do «Movimento da Escola Nova», o movimento pedagógico propulsor do referido paradigma pedagógico da aprendizagem. Nesse momento, a necessidade de definir um paradigma alternativo ao paradigma da instrução era, ainda, um esboço. O que eu sabia é que era uma necessidade escapar aos três maiores equívocos que aquele movimento pedagógico nos legou: o da autossuficiência cultural dos alunos, o da desvalorização do conhecimento culturalmente validado e o da afirmação dos professores como facilitadores. Foi na obra Educar e aprender na Escola: Questões, perspectivas e respostas pedagógicas, publicada em 2010 pela Fundação Manuel Leão (sob a tutela editorial de Matias Alves), que eu e a Ariana propusemos, finalmente, um quadro teórico onde definimos os pressupostos e as implicações de cada um dos três paradigmas atrás referidos. Mais tarde, em 2016, publicamos, na revista Diálogo Educacional, um artigo intitulado Instruir, aprender ou comunicar: Reflexão sobre os fundamentos das opções pedagógicas perspetivadas a partir do ato de ensinar, onde explicitamos, pela primeira vez, tal como o título do artigo o revela, que a abordagem proposta tinha a ver, sobretudo, com a necessidade de refletir sobre o trabalho dos professores. Por isso, também, é que reconheço que nesse título incorremos num erro que, hoje, nos conduziria a substituir o termo aprender pelo termo facilitar, dado que o segundo termo é, ao contrário do primeiro, um termo mais congruente com a abordagem, atrás enunciada.
Daí que, meu caro Matias Alves, só me reste agradecer a tua questão e esperar que todos compreendam que não recuso que devam ser as aprendizagens dos alunos a preocupação central dos professores. O que considero inaceitável é que a ação docente seja vista como um mal menor ou, na pior das hipóteses, um obstáculo à concretização daquelas aprendizagens e ao impacto formativo das mesmas na afirmação e desenvolvimento de cada estudante. Se é verdade que a ação profissional dos professores pode impedir os alunos de aprender, não é inevitável que isso aconteça. Se, por um lado, ensinar não é um sinónimo de instruir, importa reconhecer, por outro, que assumir que os docentes devam ser facilitadores pode constituir um modo de recusar que o ensino seja a principal função dos professores. Daí a necessidade de estabelecer um vínculo obrigatório entre as intenções educativas dos professores e as aprendizagens que se espera que os alunos realizem, ainda que se saiba, tal como defende Meirieu, que se a função dos professores é fazer tudo pelos seus alunos, importa que não se esqueçam que tudo o que possam fazer não poderá ser feito sem eles.
De forma breve, são estas as razões porque me distancio do paradigma da aprendizagem e porque prefiro afirmar que é o paradigma da comunicação que poderá alavancar a possibilidade das escolas se afirmarem como espaços onde os alunos podem realizar aprendizagens culturalmente significativas, humanamente empoderadoras e, por isso, mais inclusivas. Não se pretende, então, desvalorizar o compromisso da Escola com as aprendizagens dos alunos e, por esta via, com a necessidade desta instituição se construir como um contexto onde estes possam aprender a conhecer, a aprender a fazer, a aprender a ser, a aprender a conviver e, claro, a aprender a crescer juntos. O que se pretende é valorizar o facto de um tal compromisso se encontrar irremediavelmente relacionado com o trabalho curricular e pedagógico que os professores suscitam e dinamizam nas suas salas de aula. Um trabalho que, de acordo com os pressupostos acabados de enunciar, se estutura, em larga medida, em função da qualidade do ambiente de comunicação que tem de ser criado entre os alunos, a partir do que sabem e do que são, e o conhecimento culturalmente validado, o qual é exponenciado quando se compreende que esta relação desencadeia outros momentos e dinâmicas comunicacionais, nomeadamente aqueles que têm a ver com as oportunidades de comunicação que se estabelecem entre cada alunos e os seus pares, entre os alunos e os seus profesores ou, ainda, entre os alunos e outros atores educativos.
Me recordo a primeira vez que ouvi as suas palavras, Rui, com o conselho de Meirieu: "Se a função dos professores é fazer tudo pelos seus alunos, importa que não se esqueçam que tudo o que possam fazer não poderá ser feito sem eles." Desde então tem sido o meu mantra quando ouço que os professores já fizeram de tudo (e muito fazem!) e não superaram tal obstáculo. Só não podemos nos esquecer que sem eles - os alunos-, nada é feito. E muita vezes os alunos estão a margem do seu próprio processo educativo - ou porque estão a ser instruídos ou porque são considerados autossuficientes. Eis estão o grande desafio de ser professor: promover situações que permitam uma relação significativa destes alunos com o saber.
E como é difícil comunicar!