O PIAAC: O que nos revela? (II)
A literacia dos adultos entre os 16 e os 24 anos, em Portugal
Reconheço que a importância que atribuo à necessidade de promover uma reflexão específica sobre o desempenho, no PIAAC, dos adultos portugueses que se encontram no escalão etário entre os 16 e os 24 anos deriva da centralidade que se tem de estabelecer entre o seu nível de literacia e as experiências escolares que lhes foram ou têm vindo a ser proporcionadas. Trata-se de uma opção que deriva da necessidade de se reconhecer que enquanto os resultados dos outros grupos etários se explicam, também, pela falta que a Escola lhes fez, no caso dos mais novos, o que há que discutir é que Escola lhes tem vindo a ser oferecida. Não querendo propor uma abordagem reducionista dos resultados, não se pode ignorar, contudo, que, como se afirma numa das brochuras da ANQEP, em “todos os países participantes no Inquérito às Competências dos Adultos, a níveis mais elevados de escolaridade estão associados níveis mais elevados de proficiência em literacia, numeracia e resolução adaptativa de problemas” (brochura 2 da ANQEP, pág. 5).
Neste sentido, pode considerar-se que tudo o que se tem feito em Portugal para se consolidar o projeto dos 12 anos de escolaridade obrigatória, erradicar o insucesso e o abandono escolares e aumentar a percentagem de estudantes no Ensino Superior corresponde a um investimento que não pode ser desprezado porque, entre muitas outras coisas, tem um impacto decisivo no desevolvimento da literacia, da numeracia e na capacidade de resolução de problemas dos adultos portugueses.
Se as diferenças entre a proficiência dos adultos portugueses mais jovens, nos três domínios que o programa de avaliação da OCDE valoriza, e a proficiência dos adultos mais velhos é um facto que nem sempre é reconhecido como uma ocorrência significativa, isso não significa que possamos escamotear as diferenças que continuam a subsistir entre os adultos portugueses do grupo 16 - 24 anos e a média dos resultados obtidos pelos adultos do mesmo escalão etário dos restantes países que participaram no PIAAC. Neste caso, o que se constata é que nos domínios da literacia e da numeracia os nossos jovens estão abaixo 13 pontos da média dos resultados alcançados pelos jovens daqueles países, enquanto ao nível da resolução adaptativa de problemas a diferença é de 11 pontos em desfavor de Portugal.
Tal como referi no texto anterior, a propósito do TIMSS, não me parece que seja honesto confinar a reflexão sobre os resultados dos portugueses em provas internacionais às políticas educativas do governo A ou B, às condições de trabalho e à falta de reconhecimento do trabalho docente ou, ainda, ao eixo das assimetrias socioculturais. Isto não significa que não tenhamos de discutir estas problemáticas, mas tão somente que a discussão sobre as mesmas não pode alienar a reflexão sobre as conceções e as práticas curriculares e pedagógicas dos professores portugueses.
Esta é uma problemática que, na verdade, não pode continuar a ser ignorada, quanto mais não seja porque é a problemática à qual se subordinam as restantes problemáticas atrás referidas. É o reconhecimento deste estatuto que nos pode permitir propor algumas perguntas decisivas. Uma delas, relacionada com a definição de literacia, é se é possível que alguém possa aprender a “aceder, compreender, avaliar e refletir sobre textos escritos para atingir objetivos, desenvolver conhecimentos e participar na sociedade” (brochura 1 da ANQEP, p. 3) e subordinar a relação com a leitura e a escrita a exercícios que visam suscitar a aprendizagens de ambas como fins em si mesmo e não como oportunidades de promover uma relação mais esclarecida e exigente com o mundo, as pessoas e os acontecimentos?
Outra questão, relacionada com a definição de numeracia, obriga a perguntar se se pode “aceder, utilizar e raciocinar criticamente com base em conteúdos matemáticos e em informação e ideias representadas de múltiplas formas, de modo a lidar com as exigências matemáticas de uma série de situações na vida adulta” (ibidem), continuando a ensinar matemática, através da valorização de exercícios cuja preocupação se circunscreve, acima de tudo, à reprodução de procedimentos, sem cuidar do seu valor cognitivo ou do seu significado e plausibilidade para os alunos que os executam?
Uma última questão, é a de saber como é que se desenvolve a capacidade para resolver problemas “numa situação dinâmica, na qual a solução não está imediatamente disponível” (ibidem), a qual conduz ao desenvolvimento de processos cognitivos e metacognitivos que permitam “definir o problema, procurar e selecionar informações e conceber e aplicar uma solução” (ibidem), nos mais variados contextos, em ambientes educativos que penalizam os erros e visam promover o adestramento cognitivo e atitudinal dos alunos?
Trata-se de questões que nos obrigam a refletir sobre a relação que nas escolas se estabelece entre os alunos e o conhecimento culturalmente validado. Se este último não pode ser desprezado, como se constituísse um obstáculo ao desenvolvimento da inteligência e da humanidade dos alunos, também não se pode continuar a insistir numa abordagem que entende esse tipo de conhecimento como um instrumento de disciplinarização intelectual e atitudinal circunscrita que, na verdade, se afirma como um obstáculo à afirmação da sua literacia, numeracia e da capacidade de se envolver na resolução adaptativa de problemas.
Esta é uma visão sobre o papel educativo do conhecimento culturalmente validado que tende a emergir como reinvindicação a pretexto das provas de avaliação internacionais, parecendo ignorar-se deliberadamente o contributo de uma tal abordagem para a legitimação, no passado, da Escola como um espaço deliberado de seleção académica e social e, no presente, para a afirmação de uma escola de massas elitizada. Por isso é que, por exemplo, os melhores resultados do PIAAC são obtidos “por adultos com ensino superior em áreas STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática)” (brochura 2 da ANQEP, p.5), os quais “atingem níveis de proficiência em numeracia correspondentes a 298 pontos” (ibidem) que, sendo inferiores à média da OCDE para grupos equivalentes (com uma média de 304 pontos), não deixam de ser resultados superiores àqueles que obtiveram o mesmo grupo de adultos que vivem nos “EUA, Irlanda, Espanha, Itália ou Coreia do Sul” (ibidem).
O que fazer?
Fontes
Brochura 1 da ANQEP - Programa Internacional para a Avaliação das Competências dos Adultos/Ciclo 2 (Ver https://www.anqep.gov.pt/np4/?newsId=1119&fileName=Brochura_PIAAC_PRT_02_12_2024.pdf)
Brochura 2 da ANQEP - «Resultados do Programa Internacional para a Avaliação das Competências dos Adultos/CIclo 2 - Destaques Nacionais (Ver https://www.anqep.gov.pt/np4/?newsId=590&fileName=Destaques_PIAAC_PRT_Dez2024_FINAL.pdf)