Viagem no tempo: People are strange
[Esta é a crónica de alguém que evoca um acontecimento único da sua vida como professor, quando uma uma aluna lhe pediu para verificar se o trabalho de Inglês exigia alguns retoques. Apesar de ser uma solicitação estranha, visto que António era docente de Matemática, o sim, igualmente estranho do professor, esteve na origem da estória que se passa a narrar]
Nunca mais se esqueceria quando uma das suas alunas do 9º ano, a Matilde, lhe pediu que lesse um trabalho para entregar à professora de Inglês.
Segundo o que a rapariga lhe dissera, a professora tinha-lhe proposto que escrevessem um texto sobre a importância dos outros na nossa vida. E ela respondeu ao pedido com uma redação intitulada: People are strange. Foi este o texto que António começou por ler rapidamente e que voltou a reler, impressionado com o que a Matilde tinha escrito. Sabia que a miúda não era uma aluna por aí além, ainda que fosse relativamente bem comportada. Era daquelas que andava no fio da navalha. Por isso ficou surpreendido com o trabalho.
People are strange when you are stranger, because you are not like them and they don´t speak to you in a language that you can ear. When you are stranger, no one remember your name. You are alone, faces look ugly and music is your only friend. So, when music is over, I question my existence and purpose in life.
Lera este parágrafo vezes sem conta. Não sabia se pasmado com a qualidade da escrita, se com a amargura que se pressentia naquelas palavras.
When you are stranger, you are lost girl, an unhappy girl. It seem’s you are locked in a prison, crying. Porque carga de água aceitara ler aquele trabalho? Estava confuso. Já não sabia que tipo de ajuda é que a aluna pretendia. Queria que ele lhe corrigisse o inglês ou estava a enviar-lhe um SOS?
Run, run, run. Let’s run. Wake up. Find your friends, they are in your head and take advantage while they hang you out to dry. E o texto prosseguia sobre a importância dos amigos e a dificuldade em fazer-se entender pelos que não nos conhecem. O que é que lhe iria dizer? Não disse nada. Apenas lhe perguntou pelas notas que costuma obter a Inglês e soube que estava perante uma aluna que andava entre os onze e os treze. Este trabalho vale mais do que isso, confessou-lhe. Deu-lhe os parabéns e despediu-se. Do mesmo modo que não lhe disse que fotocopiara o texto para o mostrar à namorada, também não a inquiriu sobre as razões que justificaram aquele estranho pedido de ajuda.
Na sexta-feira à noite, finalmente, falou sobre o assunto com a Joana que, depois de ler o trabalho, deu uma gargalhada e com um sorriso irónico lhe perguntou: Sabes o que está aqui? Diz-mo tu. Uma colagem de frases retiradas, pelo menos, de letras de canções dos Doors, dos Nirvana e, talvez, dos Limp Bizkit, dos Red Hot Chili Pepers e, sabe Deus, de quem mais. A miúda levou-te, António. E de que maneira. A rapariga usara-o muito provavelmente como cobaia. Para testar a marosca. Se a coisa pegasse com ele, era capaz de funcionar também com a Professora de Inglês. E ele a pensar que a coisa era um pedido de ajuda subtil. Riram a bandeiras despregadas. O que vais fazer?
Não fez nada. Apesar de tudo, o trabalho tinha mérito. A catraia, afinal, sabia alguma coisa de Inglês. Respeitara o tema e fizera um esforço apreciável para que frases provenientes de fontes diversas se transformassem num ensaio coerente e interessante. O tempo passou e o assunto encerrou-se por si mesmo.
Qual teria sido a classificação que a colega atribuíra àquele trabalho?
[Texto adaptado da obra: Trindade, Rui; & Cosme, Ariana (2003). Isso vai sair no teste?. Porto: Edições ASA (Cadernos CRIAP 36)]